Infelizmente, a massa da humanidade não
percebe esse fato. Ela continua a viver como se nada tivesse mudado.
Recordo-me da história de Nietzsche sobre o louco que, nas primeiras
horas da manhã, corre pelo mercado com um lampião na mão, exclamando:
“Procuro Deus! Procuro Deus!” Como muitos à sua volta não crêem em
Deus, ele provoca muitos risos. “Deus se perdeu?”, zombam dele. “Ou se
escondeu? Ou foi viajar ou emigrou!” E riem alto. Então, escreve
Nietzsche, o louco pára no meio deles e crava-lhes o olhar:
“Onde está Deus?”, ele grita. “Eu lhes direi. Nós o matamos - vocês e eu. Todos nós somos seus assassinos. E como fizemos isso? Como pudemos beber o mar? Quem nos deu a esponja para apagar todo o horizonte? O que fizemos quando desamarramos esta terra do seu sol? Para onde ela está se movendo agora? Para longe de todos os sóis? Não estamos caindo sem parar? Para trás, para os lados, para a frente, em todas as direções? Restou alguma coisa em cima ou embaixo? Não estamos vagando como que por um nada infinito? Não estamos sentindo a respiração do espaço vazio? Não ficou mais frio? Não está chegando cada vez mais a noite? Não estamos tendo de acender lampiões de manhã? Não ouvimos apenas o barulho dos coveiros que estão sepultando a Deus? ([...]Deus está morto [...]. E nós o matamos. Como nós, os maiores de todos os assassinos, iremos consolar a nós mesmos?”[7]
A multidão ficou fitando o louco em silêncio e
perplexidade. Por fim, ele coloca o lampião no chão e disse: “Cheguei
muito cedo, esse acontecimento incrível ainda está a caminho – ainda
não atingiu os ouvidos do ser humano”. O ser humano ainda não
compreendera realmente as conseqüências do que fizera ao matar a Deus.
Mas Nietzsche predisse que um dia as pessoas entenderiam as implicações
do seu ateísmo; e essa percepção daria início a uma era de niilismo – a
destruição de todo significado e valor da vida. O fim do cristianismo,
escreveu Nietzsche, significa o advento do niilismo. Esse mais terrível
de todos os hóspedes já está à porta. “Toda a nossa cultura européia
está há algum tempo em movimento”, escreveu Nietzsche, “numa tensão
torturante que está crescendo a cada década, como na iminência de uma
catástrofe: sem descanso, com violência, precipitado, como um rio que
quer chegar ao fim, que não reflete mais, que tem medo de refletir”[8].
A
maioria das pessoas ainda não reflete sobre as conseqüências do
ateísmo, e assim, como a multidão no mercado, continua seu caminho sem
saber. Mas quando entendemos, como Nietzsche, o que o ateísmo implica,
essa pergunta fará grande pressão sobre nós: como nós, os maiores
assassinos, consolaremos a nós mesmos?
A impossibilidade prática do ateísmo
Quase a única solução que um ateu pode oferecer é que
enfrentemos o absurdo da vida e vivamos com coragem. Bertrand Russell,
por exemplo, escreveu que temos de construir nossa vida sobre “o firme
fundamento do desespero incessante”[9]. Somente
reconhecendo que o mundo é realmente um lugar terrível é que podemos
lidar bem com essa vida. Camus disse que devemos reconhecer
honestamente o absurdo da vida e depois viver com amor uns pelos outros.
O
problema fundamental com essa solução, porém, é que é impossível viver
de modo coerente e feliz com uma cosmovisão assim. Quem vive de modo
coerente, não será feliz; quem vive de modo feliz, apenas o é porque
não é coerente. Francis Schaeffer explicou bem esse ponto. Ele. diz que
o homem moderno mora em um universo de dois andares. No andar de baixo
está o mundo finito sem Deus; ali a vida é um absurdo, como vimos. No
andar de cima estão sentido, valor e propósito. Muito bem, o homem
moderno mora no andar de baixo porque acredita que Deus não existe. Só
que não pode viver feliz num mundo absurdo; por isso, constantemente dá
saltos de fé para o andar superior para afirmar sentido, valor e
propósito, apesar de não ter direito a isso por não crer em Deus. O
homem moderno é totalmente incoerente quando dá o seu salto, porque
esses valores não existem sem Deus, e o ser humano no andar de baixo
não tem Deus.
Olhemos mais uma vez, então, cada uma
dessas três áreas em que vimos que a vida sem Deus é um absurdo, para
mostrar como o ser humano não pode viver de modo coerente e feliz com
seu ateísmo.
O sentido da vida
Primeiro,
a área do sentido. Vimos que, sem Deus, a vida não _tem sentido.
Todavia, os filósofos continuam vivendo como se a vida tivesse sentido.
Por exemplo, Sartre argumentou, que é possível criar sentido para a
vida escolhendo livremente certo curso de ação. O próprio Sartre
escolheu o marxismo.
Bem, isso é de uma incoerência
completa. Não há coerência em dizer que a vida é objetivamente um
absurdo e depois afirmar que se pode criar sentido para a vida. Se a
vida é realmente um absurdo, o ser humano está preso no andar de baixo.
Tentar criar sentido na vida significa saltar para o andar superior.
Mas Sartre não tem base para dar esse salto. Sem Deus, não pode haver
sentido objetivo na vida. O programa de Sartre é na verdade um
exercício de auto-engano. O universo na verdade não adquire sentido só
porque eu lhe atribuo algum sentido. Isso é fácil de ver: imagine que
eu dou um sentido ao universo e você lhe dá outro. Quem tem razão? A
resposta, claro, é nenhum dos dois. O universo sem Deus permanece sem
sentido em termos obietivos, não importa como nós o consideremos.
Sartre na verdade está dizendo: “Vamos fazer de conta que o universo tem sentido”. E isso equivale a enganar a si mesmo.
A
questão é esta: se Deus não existe, a vida, em termos objetivos, não
tem sentido; acontece que o ser humano não pode viver de modo coerente
e feliz sabendo que a vida não tem sentido; assim, com o propósito de
ser feliz, ele finge que a vida tem sentido. Isso, claro, é uma
incoerência a toda prova pois, sem Deus, o ser humano e o universo não
têm nenhum sentido real.
O valor da vida
Agora
volte-se para o problema do valor. É aqui que ocorrem as incoerências
mais flagrantes. Em primeiro lugar, os humanistas ateus são totalmente
incoerentes ao afirmar os valores tradicionais de amor e fraternidade.
Camus foi criticado com razão por defender de modo incoerente o absurdo
da vida ao lado da ética do amor e da fraternidade humana. Esses dois
elementos são logicamente incompatíveis. Bertrand Russell também foi
incoerente. Apesar de ateu, era um destacado crítico social e
denunciava a guerra e as restrições à liberdade sexual. Russell admitiu
que não podia viver como se os valores éticos fossem uma simples
questão de gosto pessoal, e que por isso não considerava suas próprias
posições passíveis de se crer. “Não sei a solução”, confessou[10].
A questão é que, se não há Deus, não podem existir certo e errado
objetivos. Como disse Dostoyevsky: “Todas as coisas são permitidas”.
Dostoyevsky,
porém, também mostrou que o ser humano não pode viver dessa maneira.
Ele não pode viver como se não houvesse problema algum no fato de
soldados massacrarem crianças inocentes. Ele não pode viver como se não
houvesse problema algum nos regimes ditatoriais que adotam um programa
sistemático de tortura física de prisioneiros políticos. Ele não pode
viver como se estivesse tudo bem com ditadores como Pol Pot, que
exterminam milhões dos seus próprios compatriotas. Todo o seu ser grita
para dizer que esses atos são errados – realmente errados. Mas se não
há Deus, ele não pode fazer isso. Então, ele dá um salto de fé e afirma
esses valores mesmo assim. E ao fazê-lo, revela a inadequação de um
mundo sem Deus.
O horror de um mundo sem valores ficou
claro para mim, e com muito mais intensidade, há alguns anos quando
assisti a um documentário da BBC na televisão chamado “A reunião”. Era
sobre sobreviventes do Holocausto que se encontraram em Jerusalém, onde
redescobriram amizades perdidas e compartilharam suas experiências.
Bem, eu já havia ouvido histórias do Holocausto e até visitara Dachau e
Buchenwald, e pensava que não me chocaria com mais histórias de horror.
Mas descobri que estava enganado. Talvez eu estivesse mais sensível por
causa do nascimento recente da nossa linda filha, transferindo-lhe as
situações relatadas na televisão. Seja como for, uma prisioneira,
enfermeira, contou como fora transformada em ginecologista em
Auschwitz. Ela observou que as mulheres grávidas eram agrupadas por
soldados sob a direção do Dr. Mengele e abrigadas nos mesmos barracões.
Passado algum tempo, ela notou que não via mais nenhuma daquelas
mulheres. Começou então a fazer perguntas: “Onde estão as mulheres
grávidas que foram colocadas naqueles barracões?” “Você não sabe?”, foi
a resposta. “O Dr. Mengele as usou para vivisseção“.
Outra
mulher contou como Mengele enfaixara seus seios para que não pudesse
amamentar seu bebê. O médico queria saber quanto tempo um bebê podia
sobreviver sem alimento. Desesperada, essa pobre mulher tentou manter
seu bebê vivo dando-lhe pedaços de pão molhados no café, mas sem
resultado. A cada dia ele perdia peso, fato acompanhado com precisão
pelo Dr. Mengele. Então uma enfermeira veio em segredo dizer a essa
mulher: “Dei um jeito de você sair daqui, mas você não pode levar seu
bebê. Eu trouxe uma injeção de morfina para você pôr fim à vida dele”.
Diante dos protestos da mulher, a enfermeira foi insistente: “Veja, seu
bebê vai morrer de qualquer jeito. Pelo menos salve a si mesma”. E
assim aquela mãe tirou a vida do seu próprio filho. O Dr. Mengele ficou
furioso quando soube do fato porque perdera sua cobaia, e procurou
entre os cadáveres até achar o corpo do bebê para poder pesá-lo pela
última vez.
Fiquei arrasado com essas histórias. Um
rabino que sobreviveu ao campo fez um bom resumo de tudo, quando disse
que em Auschwitz era como se existisse um mundo em que os Dez
Mandamentos haviam sido invertidos. A raça humana nunca havia
testemunhado um inferno como aquele.
Mesmo assim, se
Deus não existe, em certo sentido nosso mundo é um Auschwitz: não há
certo nem errado absolutos; todas as coisas são permitidas. No entanto,
nem o ateu nem o agnóstico podem viver de modo coerente com essa
postura. O próprio Nietzsche, que proclamou a necessidade de viver
“além do bem e do mal”, rompeu com seu mentor Richard Wagner exatamente
por causa da questão do antisemitismo e do nacionalismo germânico
estridente do compositor. De modo semelhante, Sartre, escrevendo logo
depois da Segunda Guerra Mundial, condenou o anti-semitismo, declarando
que uma doutrina que leva ao extermínio não é uma mera opinião ou
questão de gosto pessoal, de igual valor do seu oposto[11].
Em seu importante estudo “O existencialismo é um humanismo”, Sartre
luta em vão para disfarçar a contradição entre sua negação de valores
divinamente pré-estabelecidos e seu desejo urgente de afirmar o valor
dos seres humanos. A exemplo de Russell, ele não conseguia conviver com
as implicações da sua própria negação dos absolutos éticos.
Um
segundo problema é que, se Deus não existe e não há imortalidade, todos
os atos maus das pessoas ficam sem punição e todos os sacrifícios das
pessoas boas ficam sem recompensa. Quem pode viver com essa postura?
Richard Wurmbrand, que foi torturado em prisões comunistas por sua fé,
afirma:
"A crueldade do ateísmo é difícil de aceitar para quem não crê na recompensa do bem ou na punição do mal. Não há razão para sermos humanos. Não há impedimento para a profundidade do mal no ser humano. Os torturadores comunistas diziam muitas vezes: “Deus não existe, não existe além, não existe punição para o mal. Podemos fazer o que quisermos”. Ouvi um torturador chegar a dizer: “Agradeço a Deus, em quem não creio, por poder viver até essa hora em que posso expressar todo o mal que há em meu coração”. Ele expressava isso com brutalidade e tortura inacreditáveis infligidas aos prisioneiros."[12]
O teólogo inglês Cardeal Newman disse certa vez que, se
acreditasse que todos os males e injustiças da vida em toda a história
não serão corrigidos por Deus na vida do além, “bem, acho que eu
ficaria louco”. E com razão.
O mesmo se aplica a atos
de auto-sacrifício. Há alguns anos ocorreu um terrível desastre aéreo
durante o inverno, em que um avião que saiu de Washington, nos Estados
Unidos, bateu em uma ponte sobre o rio Potomac e arremessou os
passageiros na água gelada. Quando chegaram os helicópteros de resgate,
a equipe de salvamento percebeu que havia um homem que ficava jogando a
escada de cordas para outros passageiros, em vez de se deixar puxar
para a segurança do helicóptero. Seis vezes ele jogou a escada para
outros. Na sétima vez que a escada desceu, ele não estava mais lá. Dera
a sua vida espontaneamente, para que outros pudessem viver. Toda a
nação voltou os olhos para esse homem em respeito e admiração pelo ato
de bondade e altruísmo. Mesmo assim, se o ateu tem razão no que afirma,
aquele homem não fez nada de nobre – ele fez a coisa mais estúpida
possível. Ele devia ter se lançado em direção à escada e até empurrado
os outros, se necessário, a fim de sobreviver. Mas morrer por gente que
ele nem conhecia, desistir da breve existência que ainda lhe restava –
para quê? Para um ateu, não pode haver razão que justifique tal ato.
Mesmo assim, o ateu, como qualquer um de nós, instintivamente reage com
louvor a esse ato desinteressado do homem. De fato, provavelmente nunca
encontraremos um ateu que viva em coerência com seu sistema. Pois um
universo sem responsabilidade moral e sem valores é incalculavelmente
terrível.
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