Olá, leitores.
No último post anunciei que faria uma breve análise do ceticismo de Russell exposto em seu livro Por que não sou cristão, de 1957. Teria ele apresentado críticas relevantes ao teísmo cristão, ou apenas opiniões subjetivas e baseadas em conceitos ultrapassados? Seja qual for a resposta, é fato que esta publicação influenciou a geração seguinte de críticos à religião e adeptos do cientificismo. Testemunhamos o surgimento de um movimento de pessoas que publicamente não tiveram vergonha de, além de defender a não existência de Deus, fazer críticas severas aos sistemas religiosos, considerando-os prejudiciais à humanidade. Embora Russell se declare como agnóstico, o que pessoalmente considero menos tolo do que afirmar o ateísmo, ele faz críticas ao teísmo de forma a descartá-lo como uma opção assumível por uma mente pensante.
Um fato curioso é o título do livro. Russell não foi tão presunçoso quanto os seus colegas atuais neo-ateus e usou um nome que denota subjetividade: "Por que [eu] não sou cristão". O conteúdo da obra não é único, na verdade trata-se de uma coletânea de palestras, falas e pequenos ensaios do autor sobre o cristianismo e assuntos correlatos, como a existência de Deus e a moral religiosa. O primeiro capítulo é uma transcrição da palestra de 1927 que dá nome ao livro. Outro ponto alto da leitura é o capítulo que traz uma transcrição de um debate transmitido em rádio em 1948 sobre a existência de Deus, travado com o padre Frederick Copleston.
Antes de começar a análise do livro, gostaria de comentar algumas afirmações de Russell ainda no prefácio do seu livro, que merecem atenção. Para começar, Russell nos informa claramente qual a sua crença em relação a religiões:
"Considero todas as grandes religiões do mundo – budismo, cristianismo, islamismo e comunismo – não só falsas, como prejudiciais."
Achei muito interessante (e justo) aqui ele ter incluido o comunismo como uma religião, ou nas palavras dele, "um sistema de dogmas" (Unpopular Essays, 1950, p.19) . É fato que Russell visitou a União Sovética de Lenin após o final da Primeira Guerra Mundial, e ficou chocado com o autoritarismo e fanatismo do regime marxista na prática. Mas deixando isto de lado um pouco, Russell assume de antemão, no prefácio de seu livro, que todas as religiões são mentiras e não só isso, mas também são perigosas. Bem, vamos deixar que ele se explique nos capítulos seguintes. Ele continua:
"É evidente, como questão de lógica, que, já que elas diferem entre si, apenas uma delas pode ser verdadeira. Com pouquíssimas exceções, a religião que um homem aceita é aquela da comunidade em que vive, o que torna óbvio que a influência do meio foi o que o levou a aceitar a referida religião."
Posso aceitar a sua primeira afirmação. Mas a segunda claramente não é uma verdade em 100% dos casos. Fosse assim, não existiriam budistas no Brasil ou cristãos na China. Além disso, se com isso ele quer argumentar que as religiões são falsas, ele está nada menos do que recorrendo a uma falácia genética, isto é, afirmando que algo é falso só por causa do modo como a informação foi aceita por alguém.
"É verdade que os escolásticos inventaram o que declaravam ser argumentos lógicos provando a existência de Deus, (...) mas a lógica a que esses argumentos tradicionais apelavam é (...) hoje rejeitada, praticamente, por todos os lógicos (...). Entre esses argumentos, existe (...) o argumento da prova teleológica da existência de Deus. Tal argumento, porém, foi destruído por Darwin (...)."
Aqui ele introduz o assunto sobre o qual vai discorrer brevemente no primeiro capítulo. Por um lado, é verdade que os argumentos aos quais Russell se refere tinham falhas, e não podem ser considerados hoje, pelo menos na forma em que ele os conhecia, como provas para a existência de Deus. Mas a teologia e filosofia cristã se desenvolveram bastante depois que Russell proferiu estas palavras, como comentei no post anterior. Inclusive o argumento teleológico, que ele alega ter sido "destruído" por Darwin, continua vivo hoje.
A seguir ele alega haver dois tipos de males intrínsecos às religiões. Nas palavras dele:
A seguir ele alega haver dois tipos de males intrínsecos às religiões. Nas palavras dele:
"[Em primeiro lugar,] (...) considera-se virtude ter fé, isto é, ter-se uma convicção que não pode ser abalada por prova contrária. (...) A convicção de que é importante crer-se nisto ou naquilo, mesmo que uma investigação livre não apóie a crença em apreço, é comum a quase todas as religiões e inspira todos os sistemas de educação estatais. O resultado disso é que o espírito dos jovens fica tolhido e cheio de hostilidade fanática tanto contra aqueles que possuem outros fanatismos (...).
(...) também existem, na maioria das religiões, doutrinas éticas específicas que causam dano definido. A condenação, pelos católicos, do controle da natalidade, tornaria impossíveis a diminuição da pobreza e a abolição da guerra. As crenças hindus de que a vaca é um animal sagrado e de que é imoral às viúvas tornar a casar, causam muito sofrimento desnecessário. A crença comunista na ditadura de uma minoria de Crentes Verdadeiros produziu farta colheita."
É notável que ele já começa com uma definição de fé que parece ter tirado do bolso, já que nada tem a ver com a definição cristã histórica. Em outras palavras, ele cria um boneco de palha do cristianismo para poder bater nele logo depois. A fé cristã não é uma convicção baseada unicamente em afirmações sistemáticas de autoridade (dogmas) muito menos em experiências puramente emocionais. Na verdade, ela consiste em uma mistura complexa dessas coisas com uma atitude racional de confiança. Idealmente, nenhum cristão acredita sem evidências, mas são as evidências que o levam a acreditar. Entre essas evidências inclui-se também a experiência pessoal com Deus. Há um artigo que escrevi há bastante tempo aqui sobre fé, que pode ser lido complementarmente, mas eu gostaria de voltar a esse assunto depois com mais calma. Mostrarei também ao longo do livro que muitas palavras que Russell usa contra a religião cristã me parecem ser apenas uso da falácia do espantalho.
Quanto à segunda crítica, deve-se primeiro notar que Bertrand Russell é um realista filosófico - ou seja, acredita na existência objetiva de uma realidade e de uma verdade. Consequentemente, sua ética é livre de relativismos. Ele realmente acredita que certas coisas são certas e certas coisas são erradas, independente de épocas ou opiniões. O problema é que ele não dá nenhuma base filosófica para essa afirmação.
Quando estudamos o argumento moral da existência de Deus entendemos que a única forma para admitirmos valores e deveres morais objetivos é a existência de um agente moral externo e absoluto, ou seja, Deus. Russell, ao ser questionado certa vez sobre isso simplesmente discorda desta afirmativa, e diz não conhecer uma resposta melhor. Em outras palavras, ele foge do argumento. Quando ele faz criticas à moral religiosa aqui, ele o faz porque certas atitudes morais de algumas religiões quebram os valores morais que ele mesmo apresenta/concorda. Mas espere! Se ele não tem como dar uma base para isso, os próprios valores morais dele são arbitrários! Não que eu não concorde com o que ele considera certo ou errado, mas estou apenas dizendo que ele não tem como dar uma base para o que ele está defendendo.
No fim do prefácio, Russell nos deixa com uma citação inspiradora baseada na sua defesa do livre-pensamento e na total aversão a qualquer tipo de autoridade ou regras no ensino:
"Gostaria de ver um mundo em que a educação tivesse por objetivo antes a liberdade mental do que o encarceramento do espírito dos jovens numa rígida armadura de dogmas, que tem em vista protegê-los, através da vida, contra os dardos das provas imparciais. O mundo precisa de corações e de cérebros francos, e não é mediante sistemas rígidos, quer sejam velhos ou novos, que isso pode ser conseguido."
Russell entende que as religiões são más justamente porque quebram esse "princípio moral absoluto" dele que é o direito ao livre-pensamento. Obviamente, a liberdade é uma coisa boa. E eu concordo que muitos sistemas de crenças dogmáticos podem prejudicar as pessoas, inclusive talvez o cristianismo, se for seguido de uma maneira não-sincera e legalista (como talvez devia ser comum na época e no lugar em que Russell vivia - comentarei sobre isso nos próximos posts também).
Na próxima parte discutiremos a exposição de Russell sobre os motivos para não ser um cristão e a sua análise dos argumentos clássicos para a existência de Deus.
Abraços, Paz de Cristo.
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