sexta-feira, 26 de agosto de 2011

A Alma da Ciência (anotações do primeiro capítulo, Parte 3)


6. A natureza deve ser regida por "leis naturais";


Os outros povos consideravam a natureza como uma entidade viva, regida por forças misteriosas. Entretanto, se queremos estudar o mundo, precisamos acreditar que seus fenômenos são compreensíveis a nós. O Deus bíblico é visto tanto como Criador quanto como Legislador do mundo. O filósofo francês René Descartes (1596-1650) acreditava piamente neste ponto, sendo que via as leis matemáticas do Universo como sendo regidas por Deus, da mesma maneira que um Rei dita leis para seu reino.

O surgimento do conceito de "lei natural", na Idade Média, foi um fator-chave no distanciamento de nível científico entre a Europa e o resto do mundo. E observe que a argumentação aceita pelos homens da época não era "Existem leis naturais racionalizáveis, logo existe um Deus racional". Era justamente o contrário: "Existe um Deus racional, logo existem leis naturais racionalizáveis". Assim esse argumento dava mais certeza ainda para a existência das leis naturais, já que estes homens acreditavam fortemente na existência de Deus. Se o argumento tivesse sido da forma que apresentei primeiro, talvez não tivesse havido a motivação suficiente para o surgimento de uma ciência bem estabelecida. Além disto, este argumento foi aceito por fé, e não pela observação. Pois os outros povos antigos também observavam alguma regularidade na natureza. Mas bastavam encontrar uma discrepância, que a consideravam natural e não procuravam explicar a fundo.

7. As leis da natureza devem ser exatas, ou "Deus fez o Universo exatamete da maneira que Ele quis";


O fato de as leis naturais poderem ser expressas de maneira precisa através de fórmulas matemáticas foi mais um ponto para o surgimento da ciência no ambiente cristão. Em várias culturas antigas, os mitos de criação geralmente começavam com uma substância preexistente dotada de natureza inerente. O criador não poderia assim moldar o mundo exatamente de acordo com sua vontade.

Os filósofos gregos pré-socráticos postulavam a arché, que seria a substância primordial que daria origem a tudo. Séculos depois Platão pregava que o "criador" (a causa primeira) não fez o mundo a partir do nada, apenas inseriu razão (ideias) na matéria irracional, e mesmo assim isto não foi executado de maneira perfeita, já que a matéria tem a capacidade de resistir à racionalidade transmitida pela matéria. Era assim que os gregos explicavam as imprecisões da natureza. Objetos físicos eram apenas meras aproximações das ideias perfeitas.

A criação ex nihilo proposta pela tradição judaico-cristã destrói estas conclusões, já que assume um Deus com total liberdade para mover o Universo da forma mais ordenada posível. Johannes Kepler, por exemplo, em suas observações astronômicas encontrou um desvio de 8 minutos entre o tempo calculado e o medido da órbita de Marte. Segundo a filosofia grega, isto seria plenamente aceitável, já que o mundo físico nao passa de distorções de quadrados e círculos perfeitos. Mas Johannes Kepler, crendo num mundo ordenado por Deus, não podia acreditar que o problema tratava-se apenas de um círculo distorcido. Isto levou-o a criar o conceito de órbitas elípticas em vez de circulares, abandonando o modelo astronômico vigente já há mais de 2 mil anos. O próprio Kepler se refere a esses 8 minutos como uma "dádiva de Deus". Logo, a matemática aplicada ao estudo da natureza é uma consequência da considerar a natureza como criação de um Deus Onipotente.

8. O homem deve ser capaz de descobrir a ordem presente na natureza;


Este pressuposto teve que ser aceito simplesmente por fé no início dos estudos científicos. A garantia de que a mente humana possui preparo necessário para adquirir conhecimento verdadeiro sobre o mundo veio da ideia de que o homem foi criado à imagem de Deus.

Na China, por exemplo, desenvolveu-se uma tecnologia bélica e de engenharia muito avançada desde aproximadamente o primeiro milênio depois de Cristo. Entretanto, os chineses nunca desenvolveram um estudo científico sistemático porque não acreditavam nem em uma mente racional legisladora de um ordem, nem na capacidade humana de decodificar esta ordem, caso ela existisse. Embora percebessem uma certa regularidade na natureza, acreditavam ser apenas uma necessidade humana de ver ordem nas coisas. Se a natureza não é ordenada por um Ser racional e pessoal, não há nenhuma possibilidade de que outros seres pessoais e racionais possam descrevê-la e explicá-la. Um cristão, entretanto, facilmente poderia pensar que Deus não cometeria o desperdício ou a ironia de colocar o homem na terra e então cegá-lo para a verdadeira natureza do mundo ao seu redor.

9. Deve existir um modelo específico de epistemologia do conhecimento


Dizer que a natureza é inteligível ao ser humano depende do conceito da palavra inteligível. A lógica de Aristóteles, por exemplo, entende que o que define um objeto não é sua base material, mas sim seu propósito. Descobrindo o propósito para qual o objeto existe, não é necessária mais nenhuma observação, pode-se então deduzir logicamente todas as suas outras propriedades. Esse é um conceito adaptado da geometria, onde ao sabermos por exemplo que um triângulo tem três lados, podemos deduzir todas as suas propriedades matematicamente. Assim, a "ciência" dos gregos enfatizava a intuição racional dos propósitos dos objetos (ou "Formas"), seguidas da dedução, e não da experimentação. Este modelo foi inclusive adaptado ao cristianismo por São Tomás de Aquino no século XIII.

Esta filosofia cristã, conhecida como escolástica, começou a ser combatida ainda no século XIII. Quando se coloca a natureza com uma necessidade inerente de propósito ou Forma, limita-se a ação de Deus sobre estes objetos. Alguns cristãos escolásticos afirmavam por exemplo que Deus não podia permitir outra forma de movimento planetário que não posse o circular, já que esse é o mais simétrico e perfeito possível. O combatimento da escolástica intensificou-se na época da Reforma Protestante, quando surgiu uma tendência a enfatizar a Soberania de Deus e a passividade dos seres em relação aos preceitos que são impostos por Ele. Esta nova teologia inspirou e justificou uma metodologia experimental. Já que Deus criou o mundo por sua livre vontade e não por necessidades lógicas, não podemos deduzir sua Criação unicamente pela lógica. É preciso sair, observar e experimentar. Assim, o próprio cristianismo, propondo a ordem da natureza como uma imposição da vontade arbitrária de Deus, influenciou a investigação experimental sobre o mundo.

10. Mesmo sabendo que o mundo é causado pela ação livre e arbitrária de um Criador, ele não deve ser caótico, mas ordenado, por refletir a racionalidade de seu Criador;


Deus não seria, como dizia a escolástica, restringido por uma necessidade inerente de lógica ou por qualquer agente externo, mas é restringido pela sua própria natureza. O mundo é necessariamente ordenado e racional, mas não porque possui uma racionalidade inerente, e sim por refletir a racionalidade de Deus.

Isto nos leva a uma condição importante: nem sempre podemos prever como a racionalidade de Deus se revela na criação, já que a racionalidade de Deus é ilimitada, e a nossa inferior. Assim, apesar de esperarmos um padrão inteligível para a natureza, não podemos saber de antemão qual padrão ela seguirá, e isto mais uma vez nos leva a incentivar a experimentação e observação dos fenômenos naturais. Um exemplo oportuno é dado por Galileu, que quebrou os paradigmas da época sobre investigação científica; nem ao menos perguntou se era razoável que um determinado peso, lançado de certa altura ao chão, cai com a mesma velocidade de um peso menor, lançado da mesma altura. Ele simplesmente subiu na torre de Pisa e fez a experiência, levando ao resultado não intuitivo: os dois caem com a mesma velocidade. Galileu argumentou que não podemos presumir como Deus pensa; devemos antes sair e olhar para o mundo que Ele criou.

11. O homem deve agir ativamente na natureza, afim de atribuir glória a Deus e benefícios a si próprio;


Para que se possa avançar da ciência para a tecnologia é necessário um sistema de crenças que permita a intervenção humana nos processos naturais para desenvolver os propósitos humanos.

No animismo ou no panteísmo, o divino é imanente ao Universo, seja como deidades habitando nos elementos naturais ou como um espírito permeando o todo. Assim, o Universo é a única realidade, e o indivíduo é uma expressão da natureza, que não pode transcender seu meio, tendo uma posição passiva ante o mundo físico. Nessas filosofias religiosas o papel do homem é de interesse pela natureza visando apenas a adaptação, e não a subordinação de suas forças para o próprio benefício.

O conceito bíblico parte de um Deus transcendente e a criação da humanidade à Sua imagem. A mente humana consegue transcender a natureza e confrontá-la como um objeto de estudo, e não apenas amoldam-se à realidade, mas são livres para manipular os fenômenos tanto teoricamente quanto na prática. Assim, foi o cristianismo que desenvolveu uma estrutura intelectual e motivações para a tecnologia. Segundo os próprios primeiros cientistas, o objetivo da ciência era buscar "a glória de Deus e o benefício da humanidade".

Vemos em Gn 1.28 e 2.19,20 a própria ordem de Deus de que o homem dominasse sobre Sua criação e que Adão nomeasse os animais do jardim onde vivia. No idioma hebraico, em que a Bíblia foi escrito, o nome tem uma simbologia muito mais profunda do que tem na cultura ocidental, assim nomear não seria algo aleatório, mas sim baseado em observação, estudo e classificação, pois o nome deveria refletir a essência de cada ser. Mais adiante, houve o pecado e a queda do homem, mas como disse o filósofo britânico Francis Bacon (1561-1626), "o homem caiu, ao mesmo tempo, de seu estado de inocência e de seu domínio sobre a criação. (...) essas duas perdas podem, ainda nesta via, serem parcialmente reparadas; a primeira, pela religião e a fé; e a segunda, pelas artes e ciências".  Isto despertava motivação para, através da ciência, aliviar os sofrimentos impostos pela queda. Por isso a ciência no início era permeada de preocupação religiosa com os menos favorecidos.  A religião bíblica atribui um valor infinito até à pessoa mais humilde, já que todos são potencialmente filhos de Deus. Houve um ímpeto para minimizar a miséria, o trabalho intenso e monótono, enfim, melhorar a condição humana. Até esta visão de que a condição humana deve ser melhorada era algo revolucionário, que vem da Bíblia. A maioria das outras visões religiosas apresentam uma visão cíclica e fatalista do tempo, dentro das quais poderia ter sido impossível despertar um interesse tecnológico.

Conclusão

Vimos até aqui que:
  • Os ensinos cristãos serviram de pressupostos para o surgimento da ciência (por exemplo, a convicção de que há leis racionais governando a natureza);
  • Os ensinos cristãos sancionaram a ciência (por exemplo como justificativa para amenizar a labuta e o sofrimento humanos);
  • Os ensinos cristãos motivaram o estudo científico (para que pudesse ser revelada a glória e sabedoria do Criador, por exemplo);
  • O Cristianismo desempenhou um papel na regulamentação da metodologia científica (através da ênfase na experimentação e na crença da racionalidade impressa no Universo).
Esta informação tem destruído a imagem de guerra entre ciência e religião entre muitos historiadores. Falta ainda que ela passe do mundo acadêmica para o meio popular.

O próximo texto, complementando a argumentação, explica sobre as controvérsias históricas entre a igreja e a ciência, e porque elas não devem ser consideradas um argumento contra o que está sendo proposto aqui.

Abraços, Paz de Cristo.


4 comentários :

  1. Os iludidos se sentem seguros e protegidos, e se acha no direito de destilar presunções acerca de algum suposto Deus humano que só existe nas versões religiosas. Pois a ciência atual sendo como um “recém-nascido” ela ainda não teve tempo de crescer, evoluir, investigar, descobrir as leis que governam o Universo ou responder as nossas perguntas.

    Como o ateísmo é uma "novidade evolucionária", apesar dos humanos sempre terem sido “religiosos", graças ao progresso, e os meios de comunicações terem se tornado importante, o destino da humanidade será o de deixar de acreditar.

    Traduzindo, o que diferencia os humanos dos animais é a inteligência filosófica, pois os humanos almejam ter liberdade de pensamento com ausência de fiscalização. Não existe mal ou bem que nunca acabe; e a ciência é o triunfo do conhecimento sobre a ignorância...

    Pois a ciência é o único poder capaz de descobrir e entender a origem de algo que ocorreu quando ela ainda não existia, ou de explicar a origem da vida. LH

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  2. Caro Lisandro Hubris,

    1. A ciência não é uma recém-nascida... se contarmos a partir do Renascimento, lá se vão mais de 500 anos. Outras contagens mais modestas, por exemplo, a partir de Newton, dariam quase 400 anos.

    2. Se você assume que existem "leis" que regem o Universo, você deve assumir uma racionalidade responsável por instituir estas leis, a menos que você queira entrar em auto-contradição.

    3. Mais uma vez sua visão de "progresso" demonstra uma tendência positivista. Pesquise um pouco pra descobrir que isto não passa de uma utopia.

    4. Se você admite que há algo racional que distingue os humanos dos animais você deve acreditar que somos privilegiados entre os outros animais, ou seja, entrar em contradição com o seu ateísmo.

    5. A ciência é o meio mais eficiente de extrair informações sobre o meio natural, e nisto eu também concordo. Entretanto, segundo este texto, devemos agradecer a ninguém menos do que a DEUS pela existência dela.

    Abraços, Paz de Cristo.

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  3. 5- e por isso vc briga contra a biologia ...

    Seu blog não passa de uma piada ...

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  4. "5- e por isso vc briga contra a biologia ..."

    Poderia esclarecer por favor? Onde disse que sou contra a biologia, ou briguei com ela? Sou um total admirador das ciências biológicas, inclusive minha irmã pretende começar a estudar biologia ano que vem. Poderei tirar muitas dúvidas com ela.

    Abraços, Paz de Cristo.

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