sábado, 23 de março de 2019

A Teoria dos Dois Livros


Olá, leitores. Recentemente estou falando bastante sobre Evolução. Ao mesmo tempo que este assunto é bem explorado do ponto de vista ateu e anti-religioso como uma espécie de argumento contra Deus (o que eu já refutei, por exemplo, aqui ou aqui) é também um assunto é bem delicado para muitos cristãos, mesmo aqueles que possuem vocação científica, por considerarem uma espécie de obstáculo à conciliação entre a ciência e a sua fé, uma espécie de pedra no sapato de suas próprias vocações científicas e racionais.

Eu particularmente penso que isto surge principalmente de uma incompreensão da relação entre a fé e o conhecimento racional/científico. Não deve, ou não deveria haver conflito entre as duas coisas. Talvez o primeiro passo para compreender a harmonia entre fé e ciência seja a Teoria dos Dois Livros. Basicamente, ela considera que Deus não escreveu apenas um livro (a Bíblia), mas dois: há o Livro da Revelação, as Escrituras Sagradas, e há o Livro da Natureza, ou a Criação. A própria Criação é autoria de Deus, e nesta Teoria ela é vista como um livro a ser lido. Isto possui uma série de implicações práticas, que veremos detalhadamente a seguir.


I. Conceito e tipos de Revelação

O cristianismo tem como um dos pilares de sua fé a existência de Deus, como Causa Primeira de todas as coisas, o fundamento de todo o Ser e da realidade. Tudo o que não é Deus foi criado por Deus. Deus é diferente de Sua criação, ou seja, Ele é Transcendente, está fora do Universo. Para que Deus pudesse ser conhecido de uma maneira pessoal por nós, que estamos dentro do Universo, Ele precisaria se revelar a nós. É por isso que o conceito de Revelação é tão importante para nós.

A Teologia cristã distingue dois tipos de Revelação: a Revelação Geral e a Revelação Especial. As duas possuem natureza e propósitos diferentes.

A Revelação Geral é a Revelação implícita de Deus na Sua Criação. Deus nos deu racionalidade e essa racionalidade é espelhada e expressa na natureza. Podemos perceber a ordem das coisas criadas, portanto elas dão testemunho de que Deus existe e é Criador. Dois textos bíblicos são bastante importantes para fundamentar esta noção:
“Os céus declaram a glória de Deus e o firmamento anuncia a obra das suas mãos.”Salmos 19.1
“Porque as suas coisas invisíveis, desde a criação do mundo, tanto o seu eterno poder, como a sua divindade, se entendem, e claramente se vêem pelas coisas que estão criadas, para que eles fiquem inescusáveis;”
Romanos 1.20
Além de sermos seres racionais, também somos seres morais: possuímos a capacidade de julgar e agir moralmente. Temos uma noção de certo e errado que não raramente parece ser absoluta, o que aponta para um padrão absoluto, o qual é o próprio Deus, o Bem Supremo. Mais um texto bíblico fundamenta esta crença.
“Porque, quando os gentios, que não têm lei, fazem naturalmente as coisas que são da lei, não tendo eles lei, para si mesmos são lei; Os quais mostram a obra da lei escrita em seus corações, testificando juntamente a sua consciência, e os seus pensamentos, quer acusando-os, quer defendendo-os;”
Romanos 2.14,15 
A Revelação Geral, entretanto, é incapaz de nos nos transmitir tudo o que precisamos saber sobre Deus. Isto porque, como também cremos, todos nós pecamos e nos separamos de Deus (Romanos 3.23), e o homem em seu estado natural está em rebelião contra Deus. Por isto a Revelação Especial se faz necessária. Ela consiste em Deus se aproximando de nós de modo mais pessoal, interagindo com pessoas, fazendo alianças, intervindo na História humana, levantando povos, reis e nações, estabelecendo pactos e sacerdócios, e finalmente se revelando plenamente na pessoa de Jesus Cristo, providenciando nossa salvação e estabelecendo a Sua Igreja. Todo este processo foi registrado por escritos, em livros que foram compilados no que hoje conhecemos como a Bíblia Sagrada, ou as Sagradas Escrituras. Na Revelação Geral nós conhecemos a Deus, o Criador; na Revelação Especial conhecemos a Deus, o Salvador. Conhecemos o nosso próprio pecado e através da fé somos tornados capazes de sermos libertos dele e da morte espiritual, que é consequência do pecado.

Essa distinção nos leva a duas implicações:

1) A existência de uma Revelação Geral implica que algum conhecimento de Deus é de certa forma acessível a todas as pessoas, tanto pela razão quanto pelo nosso senso moral. Isto possibilita a existência de um campo chamado “Teologia Natural”. A revelação geral é o primeiro ponto de contato possível entre o conhecimento de Deus, religioso, e algum conhecimento científico.

2) O conhecimento proporcionado pela Revelação Geral é de natureza diferente do conhecimento da Revelação Especial. Deus se revela para a salvação na Revelação Especial, enquanto na Revelação Geral, o foco é ligeiramente diferente. Há uma frase clássica que expressa o que eu quero dizer: a Bíblia não é um livro científico. A Bíblia é Revelação Especial, seu foco principal é o relacionamento de Deus com o homem para a salvação. Não é adequado tentar extrair verdades científicas a partir unicamente de textos bíblicos. Deus nos deu a razão, uma capacidade própria de investigar verdades naturais a partir da observação da própria natureza.

II. Base teológica e histórica

A seguir, apresento várias citações relevantes para fundamentar a ideia dos Dois Livros de Deus. Esta metáfora existe desde muito cedo no pensamento cristão.

II.1 Bíblia

É um fato bem conhecido que logo no início a Bíblia trata a criação como um efeito da Palavra de Deus. “E disse Deus: Haja luz; e houve luz.” (Gênesis 1.3), assim como um mundo fictício passa a existir a partir das palavras de um escritor.

Os dois textos bíblicos mais importantes sobre este assunto já foram citados. Salmos 19.1 e Romanos 1.20 mostram a natureza como uma testemunha da existência, das obras e dos atributos de Deus. Há ainda alguns outros textos a serem vistos:
“Mas, pergunta agora às alimárias, e cada uma delas te ensinará; e às aves dos céus, e elas te farão saber; Ou fala com a terra, e ela te ensinará; até os peixes do mar te contarão. Quem não entende, por todas estas coisas, que a mão do Senhor fez isto?”
Jó 12.7-9
“A isto, ó Jó, inclina os teus ouvidos; para, e considera as maravilhas de Deus.”
Jó 37.14
“Olhai para os lírios do campo, como eles crescem; não trabalham nem fiam; E eu vos digo que nem mesmo Salomão, em toda a sua glória, se vestiu como qualquer deles.”
Mateus 6.28,29
Há também um texto interessante no Livro da Sabedoria, que é usado por alguns cristãos (por exemplo, na Bíblia Católica):
“pois é a partir da grandeza e da beleza das criaturas que, por analogia, se conhece o seu autor.”
Sabedoria 13.5
II.2 Tradição Cristã

Nos primeiros séculos da História da Igreja Cristã já se falava sobre um conhecimento de Deus a partir da natureza, sendo esta como algo que pode ser observado, "lido" pelo homem. A seguir são mostradas algumas citações de Pais da Igreja (os grandes teólogos cristãos dos primeiros séculos), em ordem cronológica:
“Concluímos que Deus é conhecido primeiro através da Natureza, e então novamente, mais particularmente, pela doutrina; pela natureza em Suas obras, e pela doutrna em Sua Palavra revelada.”
Tertuliano de Cartago, (c.160-c.220), Contra Marcião, I.18
“A arte divina que se manifesta na estrutura do mundo não é apenas vista no sol, na lua e nas estrelas; (…) A mão do Senhor não negligenciou nem os corpos dos menores animais (...). Tampouco a mão do Senhor negligenciou as plantas da Terra, cada uma com algum detalhe que ostenta a marca da arte divina (…). Da mesma forma, em livros escritos sob a influência da inspiração divina, a Providência concede à raça humana (…) em cada letra alguma verdade salvadora (...). Uma vez concedido que as Escrituras têm o próprio Deus como seu autor, devemos necessariamente acreditar que a pessoa que está fazendo perguntas da natureza, e a pessoa que está fazendo perguntas das Escrituras, estão fadadas a chegar às mesmas conclusões.”
Orígenes de Alexandria (185-254), Comentário sobre o Salmo 1, 3.
“o meu livro é a Natureza das coisas criadas, e ele está em minhas mãos tão logo que eu use a minha mente para ler as palavras de Deus.”
Santo Antão (251-356). Conta-se uma história sobre a vida dele, que um filósofo ao encontrá-lo certa vez lhe perguntou como um homem tão estudado poderia viver como um eremita no deserto sem um livro sequer. Esta foi a sua resposta.
“É possível atingir o conhecimento de Deus a patir das coisas visíveis, já que a Criação, como que caracteres escritos, declara em alta voz, por sua ordem e harmonia, seu próprio Senhor e Criador”
Santo Atanásio (297-373), Contra os Pagãos, II.34.
“Nós fomos feitos à imagem e semelhança do nosso Criador, dotados com intelecto e razão, de tal forma que nossa natureza era completa e poderíamos conhecer a Deus. Assim, continuamente contemplando a beleza das criaturas, através delas, como se fossem letras e palavras, poderíamos ler a sabedoria de Deus e Sua providência sobre todas as coisas.”
São Basílio de Cesareia (329-379) , Homilia de Ação de Graças, 2.
“Pois se Deus tivesse dado instrução por meio de livros e cartas, quem soubesse ler teria aprendido o que estava escrito; mas o homem iletrado teria passado sem receber nenhum benefício dessa fonte, a menos que outra pessoa o tivesse apresentado; e o homem rico teria comprado a Bíblia, mas o pobre não teria conseguido adquiri-la. Além disso, aquele que conhecesse a linguagem expressa pelas letras, poderia saber o que continha; mas os citas, os bárbaros, os índios e os egípcios, e todos aqueles que foram excluídos daquela língua, teriam passado sem receber qualquer instrução. Isto, porém, não pode ser dito com respeito aos céus; mas os citas e os bárbaros, e os indianos e egípcios, e todo homem que anda sobre a terra, ouvirão esta voz; pois não por meio dos ouvidos, mas através da visão, chega ao nosso entendimento. E das coisas que são vistas, há uma percepção uniforme; e não há diferença, como é o caso das línguas. Sobre este volume, o ignorante, assim como o sábio, será igualmente capaz de olhar; o pobre homem e também o homem rico; e onde quer que alguém possa vir, lá olhando para os céus, ele receberá uma lição suficiente do ponto de vista deles ”
São João Crisóstomo (347-407), Homilias sobre as Estátuas, IX.5.
Um dos Pais da Igreja mais importantes talvez seja Santo Agostinho (354-430). Ele escreveu bastante sobre o conceito de Livro da Natureza:
“Algumas pessoas, a fim de descobrir Deus, leem livros. Mas há um livro grandioso: a própria aparência das coisas criadas. Olha acima de ti! Olha abaixo de ti! Leia. Deus, a quem tu queres descobrir, nunca escreveu tal livro com tinta. Ele colocou diante de teus olhos as coisas que Ele fez. Podes tu pedir por uma voz mais alta do que esta?”
A Cidade de Deus, Livro XVI.
“Mas se tu tivesses começado olhando no Livro da Natureza como a produção do Criador de todas as coisas, e acreditado que teu próprio entendimento finito poderia estar em falta em qualquer coisa que parecesse estar errada, em vez de se aventurar a encontrar falhas nas próprias obras de Deus, tu não terias sido levado a essas loucuras ímpias e fantasias blasfemas com as quais, em tua ignorância sobre que o Mal realmente é, acumulas todos os males sobre Deus.”
Contra Fausto, Livro XXXII, 20.
“São às páginas divinas que deves escutar; é ao livro de Universo que deves observar. As páginas da Escritura podem apenas serem lidas por aqueles que sabem como ler e escrever, enquanto qualquer um, mesmo o iletrado, é capaz de ler o Livro do Universo.”
Comentários sobre os Salmos, XLV, 7.
“E quem, senão tu, nosso Deus, fez da divina Escritura um firmamento de autoridade sobre nós (Gn 1.7)? Os céus se dobrarão como um livro (Is 34.4), e agora se desdobram sobre nós como tenda (Sl 103.2). (...) Ó Senhor, concede que contemplemos ʽos céus, obra de tuas mãosʼ (Sl 8.4). (...) Existem, penso, outras águas sobre este firmamento, águas imortais e separadas da corrupção terrena. Louvem elas o teu nome, que te louvem as multidões dos anjos do alto dos céus e que não têm necessidade de olhar para o firmamento e de conhecer tua palavra pela leitura, porque vêem continuamente a tua face e aí lêem a tua eterna vontade sem precisar de sílabas distribuídas no tempo. Eles lêem, escolhem e amam. Lêem perenemente, e nunca passa o que lêem, porque, escolhendo e amando, lêem a imutabilidade de tua vontade. Este é um códice que não se dobra nunca, um volume que nunca se fecha, porque tu mesmo és eternamente o seu livro. Tu os colocaste acima deste firmamento estabelecido acima da fragilidade dos povos que habitam esta terra, a fim de que estes, levantando o olhar, reconheçam a tua misericórdia, que te anunciou no tempo, a ti, criador do tempo. ʽNo céu está a tua misericórdia, Senhor, e a tua verdade se eleva até as nuvensʼ (Sl 35.6). As nuvens passam; o céu, porém, permanece. Os pregadores da tua palavra passam à outra vida, mas a tua Escritura se estenderá sobre todos os povos até ao fim dos séculos. Também ʽpassará o céu e a terra. Tuas palavras, porém, não passarãoʼ (Mt 24.35). O pergaminho será enrolado, e a erva sobre a qual se estendia passará com a sua glória, mas a tua palavra permanecerá eternamente (Is 40.6). (...)”
Confissões, Livro XIII, 15.
O respaldo desta ideia continua presente na Teologia Cristã, atravessando a Idade Média:
“A lei natural, como se fosse um livro, sustenta e sustenta a harmonia de todo o Universo. Corpos materiais são como os caracteres e sílabas do livro; eles são como os primeiros elementos básicos mais próximos de nós, mas permitem apenas um conhecimento parcial.”
Máximo, o Confessor (580-662). Ambigua, 10
“O Universo é como um livro refletindo, representando e descrevendo o seu Criador, a Trindade.”
São Boaventura (1221-1274), Sobre a Trindade de Deus, capítulo XII. Nos trabalhos de São Boaventura, a metáfora do Livro é tão largamente usada que expressões como liber naturae, liber mundi ou liber creaturae são usadas como sinônimos para “natureza”, “mundo” ou “criação”.
“Os escritos Sagrados estão encadernados em dois volumes: o da Criação e o da Sagrada Escritura.”
Santo Tomás de Aquino (1225 - 1274), Sermões sobre os Dois Preceitos da Caridade e os Dez Preceitos da Lei.
Mesmo após a Reforma Protestante a ideia permaneceu presente:
“Toda a criação é o livro ou bíblia mais bela, pois nela Deus descreveu e retratou a Si mesmo.”
Martinho Lutero (1483-1546) Weimarer Ausgabe 48, 201.5-6
“Nós O conhecemos [a Deus] por dois meios. Primeiro: pela criação, preservação e governo do Universo, visto que o mundo, perante nossos olhos, é como um livro formoso (Sl 19.1-4), em que todas as criaturas, grandes e pequenas, servem de letras que nos fazem contemplar os ʽatributos invisíveis de Deusʼ (Rm 1.20)”
Confissão Belga, Artigo 2º (1561).
II.3 Cientistas Cristãos

Aqui trazemos mais algumas citações, desta vez de nomes ligados à própria ciência, que deram suporte à esta visão da Criação e da Natureza como um Livro a ser lido.

Francis Bacon (1561-1626) é geralmente considerado o fundador do método científico moderno. Ele escreveu muitas vezes sobre os Dois Livros. Por exemplo:
“Pois nosso Salvador disse: Vós errais não conhecendo as Escrituras nem o poder de Deus (Mt 22.29), deixando-nos dois livros para estudar, se quisermos nos livrar do erro: primeiro, as Escrituras, que revelam a vontade de Deus, e depois as criaturas, que expressam seu poder, sendo o último uma chave para o primeiro|: não apenas abrindo nosso entendimento para conceber o verdadeiro sentido das Escrituras pelas noções gerais da razão e das regras do discurso, mas principalmente por abrir nossa crença, ao nos fazer meditar sobre a onipotência de Deus, que está assinada e esculpida principalmente em suas obras.” (The Advancement of Learning, 1605).
Galileu Galilei (1564-1642) é talvez o primeiro cientista da modernidade, com muitas contribuições na Astronomia, Física e Matemática. No prefácio do seu Diálogo Sobre os Dois Principais Sistemas do Mundo (1632), ele escreveu:
“(...) voltar-se para o grande Livro da Natureza, que é o próprio objeto da Filosofia [Natural], é o modo de levantar os olhos: no qual Livro, embora tudo que nele se lê, como obra do Artífice onipotente (...).” 
Robert Boyle (1627-1691), o fundador da Química moderna, também utiliza o conceito de Livro da Natureza em seus escritos:

“O Livro da Natureza e uma grande peça de tapeçaria fina enrolada, a qual não somos capazes de ver completamente a uma vez, mas devemos estar contentes em esperar pela descoberta da sua beleza e simetria pouco a pouco, conforme ela vai sendo gradualmente desenrolada.” (O Cristão Virtuoso, 1690)

III. Mais implicações da ideia da Natureza como um Livro

Podemos extrair mais três implicações do que temos discutido até agora:

3) Livros são objetos feitos para serem lidos. Ver a Criação ou a Natureza como um Livro implica que há uma intencionalidade na sua estrutura perceptível, há um convite para as coisas serem contempladas, observadas, estudadas, “lidas”. Em outras palavras, a própria vocação cientifica nasce na sua forma mais perfeita por causa desta ideia, que é distintamente cristã. É por isso que vemos a ciência moderna surgir e progredir na História num ambiente cristão, a Europa do fim da Idade Média, e não em outra civilização qualquer. (Veja esta série de textos para mais detalhes).

4) São Dois Livros, mas Um Autor. Sendo os dois livros escritos pela mesma Pessoa divina, uma pessoa que não pode errar, concluímos que os dois livros não podem entrar em contradição. Esta é uma das implicações mais importantes da Teoria dos Dois Livros. Quando corretamente observados e interpretados, tanto a Revelação da Bíblia quanto a análise científica devem chegar aos mesmos resultados.

5) Logo, no caso em que parece haver uma contradição entre a Escritura e o mundo observado, somos forçados a concluir que há um erro de interpretação de nossa parte, seja de um livro ou do outro.

A visão propagandista de que ciência e religião estão em conflito, que vem sendo propagada desde meados do século XIX e infelizmente atingiu com sucesso tanto o establishment acadêmico quanto boa parte de nossas igrejas, encontra a sua derrota aqui. O conflito, se há algum, é apenas aparente. Melhor dizendo, o conflito não se dá entre os conteúdos da Revelação, mas sim entre as nossas interpretações da Revelação. Há uma distinção importante aqui entre o conteúdo da realidade objetiva e a nossa visão ou interpretação da mesma. Isto pode ser ilustrado pelo seguinte diagrama (adaptado de Deborah Haarsma, fonte):



Vemos uma estrutura de três níveis. No nível superior, está Deus, que é a fonte última de todo o Ser e toda a realidade. Abaixo, estão as realidades produzidas por Deus: a Escritura que Deus inspirou e a natureza que Deus criou. Em seguida, há as teorias produzidas pelo ser humano a partir das realidades criadas por Deus: nossa Teologia (baseada nas interpretações da Escritura) e nossa Ciência (baseada em interpretações da natureza).

Outra visão que precisa ser combatida (e este diagrama nos ajuda nisto) é a de que ciência e religião se constituem em campos separados da realidade, e um não se mistura com o outro. Mas se os dois provém da mesma fonte, em última instância, não podemos falar de campos separados. Deve existir interação entre ciência e teologia. A forma como interpretamos algo biblicamente pode afetar o modo como vemos o mundo cientificamente, e vice-versa. Apesar disto, os dois níveis diferentes no diagrama nos ajudam a visualizar um princípio importante: não se deve comparar a Ciência com a Bíblia, pois os dois estão em níveis diferentes. A comparação deve se dar entre a Ciência e a Teologia, estas duas sendo interpretações humanas falíveis.

No último nível há uma descrição supersimplificada dos objetivos de cada empreendimento humano, a Teologia ou a Ciência. Devemos reconhecer esta distinção, que as duas possuem alvos principais diferentes (o entendimento da realidade espiritual ou da realidade física), mas isto não quer dizer que estas coisas são absolutamente independentes. As setas entre os dois campos no terceiro nível ilustram este princípio.

IV. Aplicações

É interessante vermos como este princípio de interação entre nossas leituras dos Dois Livros pode ser aplicado.

No passado, a correta interpretação da Bíblia já nos forçou a mudar a forma como vemos o mundo. Por exemplo, a sabedoria antiga acreditava que o Universo era eterno e sempre existiu. Mas a Bíblia sempre afirmou que o Universo teve um começo. Durante muito tempo os teólogos cristãos insistiram neste conhecimento, e tiveram que fazer isto apesar do consenso filosófico e científico de suas épocas. Só foi muito tempo depois que a ciência, após um grande progresso e esforço investigativo, conseguiu chegar à mesma conclusão que já nos tinha sido revelada pela Escritura. Baseado em importantes observações astronômicas, um cientista cristão desenvolveu a teoria do Big Bang, contestando o conhecimento errado que o Universo sempre existiu e confirmando junto com a Bíblia que ele teve um começo. É importante ressaltar aqui que o Big Bang foi um desenvolvimento de um cristão, o padre e astrônomo Georges Lemaître. Muitos cristãos não muito familiarizados com as implicações científicas desta teoria a veem como uma fonte de conflito com a sua fé. Isto não passa de uma interpretação errada da própria teoria do Big Bang, e ainda possivelmente interpretações erradas da Bíblia. A teoria do Big Bang não é a teoria de que o Universo surgiu de uma "grande explosão" aleatória, mas sim a afirmação de que o Universo teve um começo, enquanto sempre se acreditou (contra a Bíblia) que o Universo era eterno. E não há nenhum conflito entre qualquer detalhe da teoria do Big Bang e o que a Bíblia diz acerca da origem do Universo. Alguns cristãos, notavelmente os criacionistas da Terra Jovem, contestam o Big Bang porque este afirma que o Universo surgiu há 13,7 bilhões de anos, enquanto segundo eles, a Bíblia afirma que o mundo surgiu há alguns milhares de anos. Aqui está um bom exemplo de aplicação do nosso princípio: onde parece haver algum conflito entre ciência e teologia, devemos estar interpretando errado uma das fontes (a Natureza ou a Bíblia). Neste caso, a Teoria do Big Bang continua sendo bem-sucedida, atestada por várias evidências, mesmo apesar de muitos esforços de cientistas em tentarem derrubá-la (cientistas que sabem das possíveis implicações teológicas de o Universo ter um começo). Já a questão da idade do Universo segundo a Bíblia é um problema apenas para o nicho restrito dos criacionistas da Terra Jovem (que infelizmente influenciam a maioria dos cristãos leigos). Não há nenhum trecho da Bíblia de onde possa se extrair reconhecidamente e inequivocamente alguma estimativa de data para o início do Universo. Portanto, somos forçados a concluir que os criacionistas da Terra Jovem estão interpretando errado a Escritura.

Podemos ver mais exemplos de descobertas científicas que nos forçaram a mudar algumas interpretações bíblicas. Uma leitura simples de alguns textos bíblicos pode nos levar a pensar que a Terra está imóvel no centro do Universo. De fato, assim se acreditou por muito tempo, a ciência e a teologia estavam aparentemente de acordo. Nicolau Copérnico e Galileu Galilei (outros cientistas cristãos, diga-se de passagem) então observaram cientificamente que a Terra se movia em torno do Sol. A ciência mudou suas visões, e surgiu um conflito aparente. Com isso as interpretações daqueles versículos tiveram que ser reavaliadas. De fato, o próprio Galileu trabalhou na interpretação de alguns textos bíblicos para harmonizar com a descoberta científica.

O exemplo que talvez mais chame a atenção hoje em dia está relacionado à questão da Evolução. O próprio Charles Darwin era cristão no início, e também um adepto da visão dos Dois Livros. Por causa de problemas pessoais em sua vida, ele acabou perdendo a fé. Mas isto não vem ao caso. O fato é que os dados científicos sobre a origem das espécies parecem estar sendo "lidos" de maneira correta com a evolução, este é o consenso da imensa maioria dos cientistas atualmente. Consequentemente, a maneira como nós lemos os dois primeiros capítulos de Gênesis precisa ser ligeiramente reformulada. Existem muitos teólogos cristãos honestos trabalhando nisso. Isto será tema de textos próximos aqui no blog.

Referências

G. Tanzella-Nitti. The Two Books Prior To The Scientific Revolution. Annales Theologici, v. 18, p. 51-83, 2004. Disponível em: http://inters.org/tanzella-nitti/pdf/9.TwoBooks.pdf

Alguns sites úteis:

7 comentários :

  1. Como Deus é imperceptível, inaferível, transpassa a realidade e nosso conceito de existência.A ciência chegou a conclusão que nossa realidade surgiu do nada,atualmente vácuo quântico, por acaso os acontecimentos, mais se este nada for uma barreira, uma ilusão, um limite para seres materiais. Nossa percepção dificilmente consiguirá perceber o imaterial, por isto quem não acredita pensa que é o nada, o acaso. Em sua origem os seres humanos por curiosidade inata, começou a acreditar em divindades responsavéis pela criação e natureza da coisas. Estes desvios de crenças, deu origem a várias religiões. Em um certo tempo na história humana, o povo começou a crença de um DEUS ÚNICO, inspirados pelo Divino. A inspiração do Espírito por não ser direta causou erros de intepretação nos seres humanos dando origem a váris religiões, até chegar na crença de Deus.A curiosidade humana foi motivando a estudar a natureza, investigando dasndo a origem a ciência e é através dela que acredito que descobriram alguns dos mistérios de Deus em uma visão técnica e não mistica e simplista de uma época antiga. Como a ciência estuda a realidade material, física, não consegue perceber, nem usando instrumentos a Deus que é Espirito não pode ser aferido através da materia.

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  2. David, vc sabia q os vários métodos de datação radiometricos utilizados não são confiáveis? Há varios estudos/pesquisas mostrando diferenças muito grandes e consideraveis entre um e outro nos fosseis e luz das estrelas. Obviamente isso eles não divulgam.
    Assim, é pura especulação dizer q o universo tenha milhões/bilhões de anos; mas também não defendo cegamente q o mundo/humanidade tenha 6 mil anos.
    Algo intermediário seria mais sensato entre 50 e 10 mil anos.

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    1. Os métodos de datação, assim como qualquer ferramenta tem aplicações específicas e obviamente, suas limitações. Se usada de forma inadequada pode fornecer dados imprecisos, e é desta forma que os defensores da Terra jovem se baseiam em seus cálculos. Nos Estados Unidos existem correntes religiosas que ainda defendem a idade de 6000 anos para a Terra e defendem que o criacionismo seja ensinado como ciência oposta ao ensino da teoria da evolução de Charles Darwin (Martins & Babiski – IGC).

      Cálculos Tendenciosos – Pseudomatemática

      Muitos cálculos feitos por criacionistas são realmente tendenciosos, e no caso da geologia conferem somente um exemplo simples em que a metodologia geralmente se adapta a uma conclusão pré-concebida. Eles alegam que há contaminação no material, que a taxa de decaimento muda e supervalorizam variáveis de tal forma que a datação seja calibrada com a proposta da Terra jovem.

      Em outros modelos matemáticos há este tipo de pré-concepção também estabelecida. No caso da teoria da informação, sabe-se que há a origem de informação genética a qual é fluxo dessa informação matemática. Criacionistas, como Dembski, afirmam que os algoritmos não mostram isso, embora experimentos e modelagens matemáticas demonstrem claramente tal fluxo de informação.

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    2. Marcos, são exatamente os evoluburriconistas q utilizam modelos já pré determinados concebidos ideologicamente pra q as datacões fósseis se ajustem a sua religião dos milhões/bilhões de anos sempre incluindo seu mantra nas descrições: "durante milhões de anos... "
      Um link breve e didático sobre o tema:
      https://darwinismo.wordpress.com/2016/06/19/os-metodos-de-datacao-evolucionistas-funcionam/

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    3. Cicero, a Bíblia não é cientifica, ela não descreve como as coisas acontecem, simplesmente afirma, mais não questiona. Você disse que vários métodos de datação radiometricos utilizados não são confiáveis, então utilizando a Geologia, a toria das placas tectônicas sobre a deriva continental, a America do Sul se afasta Da Africa pelos caculos derca de 5 cm por ano, pela conclusão a 180 milhões de anos. Então o que esta ecrito na biblia de tudo foi feito em 6 dias ou como os criacionistas querem de 6 mil anos, ou como você cita entre 50 e 10 mil anos, esta em desacordo com os estudos lógicos.

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    4. Marcos, sim a bíblia não foi escrita com objetivos científicos, contudo vários de seus eventos e personagens tem confirmação pela ciência em suas áreas do conhecimento como arqueologia, paleontologia, geologia, astronomia, história.

      No link citado há vários estudos
      mostrando as diferenças gritantes nos diversos métodos utilizados, assim como outros posts do site tem matérias sobre o tema das falhas dos métodos de datação q obviamente a mídia acadêmica e secular não divulga.

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    5. Acredito em Deus, gosto de ciências e li muito a Bíblia querendo saber mais sobre a origem. A Bíblia merece respeito com lições de moral e conduta. Apesar de ter sido inspirada por Deus, foi escrita em um passado de pouco conhecimento e costumes da época, Ela foi influenciada pela consciencia humana da época da percepção de sua realidade. Histórias contadas oralmente e que depois passaram para a escrita, usando a parabolas e figuras de liguagem para explicar, mais sem termos técnicos ou estudo para comprovar, so afirmando de como foi superficialmente de modo simples para que as pessoas da época entendesse.A ciência surgiu da curiosidade humana de querer saber mais, e investigando a natureza, Deus originou a natureza,e é através dela que a ciência descobriu os mistérios de como criou. A liguagem cietifica é tecnica enquanto a Bíblia é através de parábolas e figuras de liguagem, sem conhecimento cientifico. Há coisas fáceis de provar, e vestigios que se perdem com os milhões de anos no passado, mesmo achando alguns, as pessoas que não acreditam vão questionar. Há pessoas ainda que acredita que a terra e plana e o sol gira em torno, outra não acreditam que o homem foi a Lua, mesmo com as provas. É facil questionar sobre coisas difícies de provar, por exemplo: Os cientistas através do brilho de uma estrela pode estabelecer os elementos quimicos que estão presentes, eu posso dizer que não é verdade porque a distância interfere no resultado.Então qual a verdade?

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