sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Ensaio de C. S. Lewis sobre a Maldade Humana (parte 2)

(Ler a Parte 1)



Deus criou o homem com uma certa liberdade, sem a qual não seria intrinsecamente possível obter uma felicidade genuína e demonstrar amor voluntário. Entretanto, sabemos que seria possível que Deus eliminasse, por meio de um milagre, as consequências transtornantes do primeiro pecado da humanidade. Analisando a situação, porém, vemos que se Ele tivesse feito isso, Ele faria também quando os homens pecassem pela segunda vez, e pela terceira, assim no final teríamos um mundo com tanta interferência divina nos nossos atos voluntários que sequer poderíamos afirmar que existe alguma liberdade ou poder de escolha neste mundo.

Há quem diga que há controvérsias científicas à doutrina da Queda do Homem. O modelo científico evolucionista apresenta nesse ponto um quadro totalmente contrário ao bíblico, já que em vez de decair de um estado de perfeição e felicidade, o homem teria evoluido de um estado selvagem e irracional para o modo como somos hoje. Entretanto, as evidências arqueológicas nos levam a uma certa dificuldade natural: não se pode concluir de artefatos rudimentares das civilizações antigas, que estas civilizações eram rudimentares em todos os aspectos. Afinal, o que temos do homem pré-histórico hoje em dia são só restos materiais de coisas que ele teria fabricado, ou pelo menos das coisas mais duráveis. Não se pode inferir muito sobre a inteligência ou virtude moral desses homens, apenas a partir dos artefatos. De fato, graças aos homens pré-históricos temos hoje em dia coisas sem as quais não existiríamos em sociedade hoje, como a língua, a arte, a família, o vestuário, o uso do fogo, a domesticação dos animais, a roda, o barco, a agricultura.

Uma outra objeção seria que a ideia de pecado pressupõe uma lei contra a qual pecar. E no homem primitivo, o conceito de sociedade, do qual segundo os evolucionistas, advém os princípios morais, não estavam plenamente estabelecidos. Mas essa objeção implicita, contrariamente à tradição judaico-cristã, que o primeiro pecado teria sido uma espécie de "pecado social". Mas não foi. O primeiro pecado foi uma atitude diretamente contra Deus. Dizer que foi pura e simplesmente desobediência não traduz totalmente a essência do pecado original. Como argumenta Lewis (citando S. Agostinho), o primeiro pecado foi de fato uma consequência do Orgulho:

Este pecado foi descrito por Santo  Agostinho como o resultado do orgulho, do movimento através do qual uma criatura (isto  é, um ser essencialmente dependente cujo princípio de existência não é contido em si mesmo mas em outro) tenta estabelecer-se por si mesma, existir por si mesma. (De Civitate Dei XIV, xiii.37) Um pecado assim não exige condições sociais complexas, nenhuma experiência prolongada, nem grande  desenvolvimento intelectual. A partir do momento em que uma criatura passa a ter percepção de Deus como Deus e de si mesma como o "eu", a terrível alternativa de escolher a Deus ou ao "eu" como centro se abre para ela. Este pecado é cometido diariamente pelas crianças pequenas e pelos camponeses ignorantes, assim como por pessoas sofisticadas; tanto pelos solitários como pelas pessoas que vivem em sociedade; trata-se da Queda na vida de cada indivíduo, e, em cada dia de cada vida individualmente, o pecado básico por  detrás de todos os pecados particulares: neste justo momento você e eu estamos cometendo, prestes a cometer, ou arrependendo-nos dele. Ao acordar, tentamos colocar o novo dia aos pés de Deus; antes de termos acabado de fazer a barba ele porém se torna o nosso dia e a participação de Deus nele é tida como um tributo que devemos pagar de "nosso próprio" bolso, uma dedução do tempo que sentimos deveria ser "nosso". Um indivíduo começa um novo emprego com um sentimento intenso de devoção e talvez durante a primeira semana ele mantenha essa atitude, cumprindo a sua devoção, aceitando os prazeres e sofrimentos da mão de Deus, conforme surgirem, como se fossem simples "acidentes". Mas na segunda semana ele já está começando a "conhecer os truques" e na terceira já fez o seu próprio plano estabelecendo o seu papel no trabalho. Quando pode seguir esse plano sente que não está auferindo mais do que o que lhe cabe por direito e se isso não acontece sente-se prejudicado, esbulhado. A pessoa que ama, em obediência a um impulso imprevisto, que pode estar cheio de boa vontade e do desejo e necessidade de não se esquecer de Deus, abraça o ser amado e então, inocentemente, experimenta uma emoção de prazer sexual; mas o segundo abraço pode ter em vista esse prazer, pode ser um meio de alcançar um fim, pode ser o primeiro passo da estrada em declive que leva à consideração de um semelhante como uma coisa, um instrumento a ser usado para o seu prazer. Dessa forma a flor da inocência, o elemento de obediência e disposição para aceitar aquilo que vier, é eliminado de toda atividade. Os pensamentos experimentados por causa de Deus – como aquele em que nos  empenhamos no momento - são continuados como se fossem um fim em si mesmos, e a seguir como se nosso prazer em pensar fosse o fim, e finalmente como se nosso orgulho ou celebridade fosse o fim. Desse modo o dia inteiro, e todos os dias de nossa vida, estamos nos desviando, escorregando, afastando - como  se Deus fosse, para nossa consciência presente, um plano inclinado suave no qual não há apoio.

Na verdade, nossa natureza agora é tal que precisamos escapar; e o pecado, por ser inevitável, pode ser venial. Mas não foi Deus que nos fez assim. A gravitação para longe de Deus, "a jornada em direção ao ego habitual", deve ser, ao que pensamos, um resultado da Queda. O que aconteceu exatamente quando o homem caiu, não sabemos; mas se é legítimo fazer conjeturas, ofereço o seguinte quadro: um "mito" no sentido socrático, uma narrativa plausível. (Isto é, um relato do que pode ter sido o fato histórico. Não devendo ser Confundido com "mito" na opinião do Dr. Niebuhr (i.e., uma representação simbólica da verdade não-histórica.)

Durante longos séculos Deus aperfeiçoou a forma animal que iria tomar-se o veículo da humanidade e a imagem de Si mesmo. Ele deu-lhe mãos cujo polegar podia ser aplicado a cada um dos dedos, e mandíbula, dentes e garganta articulados, assim como um cérebro suficientemente complexo para executar todos os movimentos materiais dando Julgar ao pensamento racional. A criatura pode ter existido durante séculos  neste estado antes de tomar-se homem: pode ter sido até mesmo inteligente o bastante para fazer coisas que o arqueólogo moderno aceitaria como prova de sua humanidade. Mas não passava de um animal porque todos os seus processos físicos eram dirigidos a fins puramente materiais e naturais. Então, na plenitude do tempo, Deus fez descer sobre este organismo, tanto na sua psicologia como fisiologia, uma nova espécie de consciência que podia dizer "eu" e "mim", que podia olhar para si mesma como um objeto, que conhecia Deus, que podia fazer juízos quanto à verdade, beleza e bondade, e que estava tão acima do tempo que podia percebê-lo passar. Esta nova consciência governava e iluminava o organismo inteiro, enchendo de luz cada uma de suas partes; não sendo, como o nosso, limitado a uma seleção dos movimentos existentes numa parte dele, a saber, o cérebro. O homem era então todo consciência.

(...) Não sabemos quantas dessas criaturas Deus fez, nem por quanto tempo continuariam no estado paradisíaco. Mas, mais cedo ou mais tarde, elas caíram. Alguém ou alguma coisa lhes sussurrou que poderiam tornar-se como deuses - que podiam deixar de manter Suas vidas na direção do Criador  e aceitar todos os seus prazeres como dádivas não convencionais, como "acidentes" (no sentido lógico) surgidos no  decorrer de uma vida dirigida à adoração de Deus e não a esses prazeres.

Da mesma forma que o jovem deseja uma mesada do pai, que possa considerar como sua, com a qual faz seus próprios planos (e com justiça, pois o pai é afinal de contas um semelhante) eles também desejavam agir por conta própria, cuidar de seu futuro, planejar para o seu prazer e segurança, ter um  meum do qual sem dúvida pagariam um tributo razoável a Deus em termos de tempo, atenção, e amor, mas que em todo caso era deles e não dEle. Eles queriam, como dizemos hoje, ser "seus próprios donos". Mas isso significa viver uma mentira, porque na verdade não somos donos de nós mesmos, nossa alma não é nossa. Eles queriam um lugar no universo de onde pudessem dizer a Deus: "Este negócio é nosso e não seu." Mas não existe um canto assim. Eles queriam ser substantivos, mas eram, e serão eternamente, simples adjetivos. Não temos idéia em que ato, ou série de atos, o desejo contraditório, impossível, encontrou expressão. Por tudo o que sei, pode ter ligação com o ato de comer literalmente uma fruta, mas a questão não é importante.

Este ato de obstinação por parte da criatura, que constitui uma absoluta falsidade em relação à sua posição de criatura, é o único pecado que pode ser concebido como a Queda. A dificuldade com respeito ao primeiro pecado é que ele deve ser hediondo, caso contrário suas conseqüências não seriam tão terríveis, embora seja ao mesmo tempo algo que um ser, livre das tentações do homem decaído, possa ter possivelmente praticado. O desvio de Deus para o "eu" cumpre ambas as condições.  É um pecado possível até mesmo ao homem paradisíaco, pois a simples existência de um "eu" – o mero fato de o chamarmos "mim" - inclui, desde o princípio, o perigo da auto-idolatria. Desde que eu sou eu, devo realizar um ato de auto-rendição, por menor ou mais fácil que seja, vivendo para Deus em lugar de para mim mesmo.

Este é o "ponto fraco" na própria natureza da criação, o risco que Deus aparentemente julga valer a pena aceitar. Mas o pecado foi hediondo porque o "eu" que o homem paradisíaco teve de render não continha uma resistência natural ao ato de render-se. Seus dados, por assim dizer, eram um organismo psicofísico inteiramente sujeito à vontade e uma vontade inteiramente disposta, embora não compelida, a voltar-se para Deus. A autoentrega que ele praticou antes da Queda não envolveu qualquer esforço, mas apenas a agradável vitória sobre uma auto-aderência infinitesimal que causou prazer ao ser vencida - no que vemos uma leve analogia na auto-entrega extasiada dos amantes de hoje. Ele não tinha, portanto, qualquer tentação (no sentido dado por nós) para escolher o "eu" – nenhuma paixão ou inclinação voltada obstinadamente para esse lado – nada além do simples fato de que o ego era ele mesmo. "

A terceira objeção à doutrina da Queda do Homem seria "se Deus é bom, Ele poderia ter evitado de alguma forma o pecado ou mesmo as consequências deste". Este é o famoso Problema do Mal, aplicado à doutrina da Queda. Lewis comenta resumidamente sobre essa questão em um parágrafo:

"Deus poderia ter suspenso este processo através de um milagre: mas isto - falando por metáfora algo irreverente - seria declinar o problema que Deus, Ele mesmo, tinha estabelecido ao criar o total de um mundo contendo agentes livres, apesar de, e por meio de, sua rebelião contra Ele. O símbolo de um drama, uma sinfonia, ou uma dança, é útil aqui para corrigir um certo absurdo que pode surgir se falarmos demasiado a respeito de Deus planejar e criar o processo do mundo para o bem e de esse bem ser frustrado pelo livre-arbítrio das criaturas. Isto pode levantar a idéia ridícula de  que a Queda tomou Deus de surpresa e atrapalhou os seus planos, ou então - mais ridículo ainda - que Deus planejou tudo para condições que, Ele bem sabia, jamais iriam ser cumpridas. De fato, como é natural, Deus viu a crucifixão no ato de criar a primeira nebulosa. O mundo é uma dança em que o bem, procedente de Deus, é perturbado pelo mal que sobe das criaturas, e o conflito resultante é resolvido pela suposição do próprio Deus  da natureza sofredora que o mal produz. A doutrina da Queda voluntária afirma que  o mal que produz assim o combustível ou a matéria-prima para o segundo e mais complexo tipo de bem não é contribuição de Deus mas do homem. Isto não quer dizer que se o homem tivesse permanecido inocente, Deus não poderia então ter inventado um todo sinfônico igualmente esplêndido - supondo que insistamos em fazer perguntas desse tipo. Mas deve ser sempre lembrado que quando  falamos do que poderia ter acontecido, de contingências fora de toda realidade, não sabemos na verdade do que estamos falando. Não existem tempos nem lugares fora do universo existente em que tudo isto "poderia acontecer" ou "poderia ter acontecido". Penso que a maneira mais significativa de afirmar a verdadeira liberdade do homem é dizer que se existirem outras espécies racionais além  dele, em alguma outra parte do universo atual, então não é necessário supor que elas também tenham decaído."

3 comentários :

  1. sempre que penso no problema do mal, me vem à mente um problema maior, e que ainda (e acho) não temos resposta (acredito só com ELE no porvir), é a liberdade de satanás, ora, por que cargas d'água o destino foi a terra? ora, por que livre e não preso sem atividade com outros meios? afinal o inferno não foi feito justo para ele e os seus? DEUS de fato me parece que queria (!) que tudo acontecesse como aconteceu. Com vários fins que já sabemos mas pra mim isto é o mais complicado a ser explicado pros revoltados, o jeito é apelar pelos devidos fins propostos por DEUS com esta permissividade.
    abraço

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    1. Essa questão é mesmo muito interessante, Marcos. Entretanto, não a vejo como uma pergunta sem resposta. Considerarei dois pontos para te dar uma luz nessa questão: primeiro, a Bíblia relata em Apocalipse que, de fato, há alguns espíritos que foram deixados aprisionados em alguma espécie de abismo, e que serão libertados pouco antes de sua condenação final, nos últimos dias. Portanto, nem todos os espíritos maus estão livres. Segundo, gosto de considerar a visão que os hebreus tinham no Velho Testamento: Eles acreditam na soberania total de Deus, como autor do bem e do mal, tudo acontece sob a permissão dEle. Neste sentido, até os espíritos malignos eram sujeitos a Deus, sendo que Deus sancionava a ação deles quando necessário. Isso é visto em vários trechos do velho testamento. Com o tempo, os judeus acabaram absorvendo a cosmovisão maniqueísta dos persas e nos tempos de Jesus, a visão deles era um pouco diferente: atribuíam tudo de bom a Deus e tudo de ruim aos demônios. Eu acho que esta visão prejudica um pouco o entendimento de questões como essa que você levantou.

      Abraços, Paz de Cristo.

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  2. de fato, a consideração que fez sobre os judeus (AT) parece que piora ainda mais para discutir com os revoltados, por que até então argumentamos que isso (mal) foge da vontade de DEUS, porém ELE permitiu. Até pq também não acredito na adequação com os atributos máximos dELE, todo bom e sem sombra de variação, pra mim isto seria variação, isso não cabe em DEUS, ainda com Sua soberania.
    a questão que acredito não ser possível termos resposta é quanto à total e real vontade dELE em deixar satanas livre para atormentar o homem, por que ao meu ver parece ter querido mas jamais ter sido autor, hj, ELE realmente faz uso das mais diversas situações como vc citou, porém com fins propositais bons, a exemplo, Jó, utilizando-se da história deste, podemos tirar até algumas idéias de Sua permissividade, que foi afim de provar/manifestar Seus atributos perfeitos e assim fosse claro que ELE somente merece toda glória, até mesmo, talvez, em resposta máxima aos anjos e aos caídos, quanto à rebeldia de lúcifer em querer ser como ELE.
    E ae, entra a justiça, o perdão, a misericórdia, etc, e para isso ELE se utilizou de nossa criação, e ae que volto a afirmar, parece que ELE assim quis, para acabar com satanas e manifestar tudo que ELE é.
    Esta semana teve um debate no programa vejamsó, da rit, exatamente sobre esta questão. foi até mt bom, um pr. fez uma analogia maravilhosa com o momento da queda no jardim, e o momento da restauração na cruz no gólgata, o que revela ainda mais a leitura que fiz acima, como ele disse nunca teríamos conhecido e experimentado a manifestação máxima de amor, e podemos acrescentar mts outras qualidades perfeitas de DEUS testificadas naquele ato.

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