sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Ensaio de C. S. Lewis sobre o Amor de Deus: O Amor de Deus é egoísta?



É, já estamos na quarta parte da nossa série de postagens. Continuamos a falar do amor de Deus. 

Abraços, Paz de Cristo.



O problema de reconciliar o sofrimento humano com a existência de um Deus que ama só é insolúvel enquanto associarmos  um significado trivial  à palavra "amor" e  considerarmos as coisas como se o homem fosse o centro delas. O homem não é o centro. Deus não existe por causa do homem. O homem não existe por sua própria causa. "Porque todas as coisas tu criaste, sim, por causa da tua vontade vieram a existir e foram criadas" (Ap 4.11). Não fomos feitos em princípio para amarmos a Deus (embora fôssemos também criados para isso), mas para que Deus possa amar-nos, para que nos tornemos objetos em que o amor divino possa sentir "agrado". Pedir que o amor de Deus se satisfaça conosco na condição em que nos encontramos, é pedir que Deus deixe de ser Deus: porque Ele é o que é, o Seu amor deve, na natureza das coisas, ficar impedido e sentir repulsa por certas nódoas em nosso caráter, e porque já nos ama ele precisa esforçar-se para nos tomar dignos de amor. Não podemos sequer desejar, em nossos melhores momentos, que ele se reconcilie com nossas impurezas presentes -não mais do que a jovem mendiga poderia querer que o rei Cophetua se satisfizesse com os seus andrajos e sujeira, ou que um cão, tendo aprendido a amar o homem, pudesse desejar que este tolerasse em sua casa a criatura violenta, coberta de vermes e poluente da alcatéia selvagem. O que chamaríamos aqui e agora de nossa "felicidade" não  é o alvo principal que Deus tem em vista: mas, quando formos aquilo que Ele pode amar sem impedimento, seremos de fato felizes.

Posso perfeitamente prever que o curso  de meus argumentos venha a provocar um protesto. Eu havia prometido que ao passar a compreender a bondade divina não nos seria pedido que aceitássemos uma simples inversão de nossa própria  ética. Mas pode ser objetado que tal inversão foi justamente o que nos pediram que aceitássemos. A espécie de amor que atribuo a Deus, pode ser dito, é exatamente do tipo que nós seres humanos descrevemos como "egoísta" ou "possessivo", e contrasta desfavoravelmente com a outra espécie que busca primeiro a felicidade do ente amado e não a satisfação daquele que ama. Não estou certo de que seja assim que me sinto mesmo em relação ao amor humano. Não acho que devo dar muito valor à amizade de um amigo que se importe apenas com a minha felicidade e não proteste se cometo uma desonestidade. De todo modo, o protesto é aceito, e a resposta para ele colocará o assunto sob uma nova luz, e corrigirá o que tem sido unilateral em nossa discussão.

A verdade é que esta antítese entre o amor egoísta e o altruísta não pode ser aplicada sem ambigüidade ao amor de Deus pelas suas criaturas. Conflitos de interesses e portanto oportunidades seja de egoísmo ou generosidade, ocorrem entre os seres que habitam um mesmo mundo: Deus não pode de forma alguma competir com uma criatura, assim como Shakespeare não o faz com a personagem Viola. Quando Deus se tornou Homem e viveu como uma criatura entre as Suas próprias criaturas na Palestina, Sua vida é então de supremo auto-sacrifício e o leva ao Calvário. Um moderno filósofo panteísta declarou: "Quando o Absoluto cai no mar se transforma em peixe"; do mesmo modo, nós, cristãos, podemos apontar para a Encarnação e dizer que quando Deus se esvazia da sua glória e se submete àquelas condições únicas sob as quais o egoísmo e o altruísmo têm um claro significado, Ele é considerado como inteiramente altruísta. Mas, em sua transcendência, Deus - como a base incondicional de todas as condições - não pode ser facilmente visualizado dessa forma. Chamamos o amor humano de egoísta quando ele satisfaz suas próprias necessidades à custa daquelas do objeto - da mesma forma que um pai mantém em casa os filhos que deveriam, para o seu próprio bem, ser colocados no mundo. A situação implica em uma necessidade ou paixão por parte do ser amado, e a desconsideração ou ignorância culpável das necessidades deste por parte de quem ama. Nenhuma dessas condições está presente na relação entre Deus e o homem. Deus não tem necessidades. O amor humano, conforme nos ensina Platão, é filho da Pobreza - de uma carência ou falta; ele é causado por um bem real ou imaginário no ser amado, que é necessário ou desejado pelo amante. Mas o amor de Deus, longe de ser causado pela bondade do  objeto, faz surgir toda a bondade que este possui, amando-o primeiro para fazê-la existir e  depois tornando-a digna de amor real, embora derivado. Deus é Bondade. Ele pode conceder o bem, mas não pode necessitá-lo ou obtê-lo. Nesse sentido todo o Seu amor é infinitamente desprendido pela sua própria definição; ele tem tudo a dar e nada a receber. Assim sendo, se Deus fala algumas  vezes como se o Impossível pudesse sofrer paixão e a plenitude eterna pudesse ter qualquer carência, e carência daqueles seres a quem concede tudo a partir da sua simples existência, isto só pode significar, caso signifique algo inteligível para nós, que o Deus do milagre tomou-se capaz de sentir tal anseio e criar em Si mesmo aquilo que nós podemos satisfazer. Se Ele nos quer, esse desejo é de sua própria escolha. Se o coração imutável pode ser entristecido pelas marionetes que ele mesmo fez, foi a Onipotência Divina, e nada mais, que assim o sujeitou, voluntariamente, e com uma humildade que excede todo entendimento.

Se o mundo não existe principalmente para que possamos amar a Deus, mas para que Ele possa amar-nos, esse mesmo fato, num nível mais profundo, é assim para o nosso bem. Se aquele que em Si mesmo tem tudo escolhe necessitar de nós, é porque necessitamos de quem nos necessite. Antes e por trás de todas as relações entre Deus e o homem, como agora aprendemos no cristianismo, abre-se o abismo do ato divino do puro dar - a eleição do homem, do nada, para ser o amado de Deus, e portanto (em algum sentido) o necessário e desejado de Deus, que a não ser por esse ato nada necessita nem deseja, desde que Ele eternamente possui, e é, toda bondade. E tal ato foi feito a nosso favor. É bom que conheçamos o amor, e é melhor ainda conhecermos o amor do melhor objeto, Deus. Mas conhecê-lo como um amor em que fomos primariamente os cortejadores e Deus o cortejado, no qual buscamos e Ele foi achado, em que a sua conformidade às nossas necessidades, e não a nossa às dEle, vieram primeiro, seria conhecê-lo numa forma falsa à própria natureza das coisas. Pois somos apenas criaturas: nosso papel deve ser sempre o do paciente para o agente, da fêmea para o macho, do espelho para a luz, do eco para a voz. Nossa mais elevada atividade deve ser a resposta, e não a iniciativa. Experimentar o amor de Deus de forma verdadeira e não ilusória portanto é experimentá-lo como nossa rendição à Sua exigência, nossa conformidade ao Seu desejo: experimentá-lo de maneira oposta seria um solecismo contra a gramática do ser. Eu não nego, naturalmente, que num certo nível podemos falar corretamente da busca de Deus pela alma, e de Deus como receptivo ao amor da alma. Mas a longo prazo, a busca de Deus pela alma não passa de um aspecto ou aparência (Erscheinung) da busca da mesma por Ele, desde que a própria possibilidade de amarmos é um dom dEle para nós, e desde que nossa liberdade não passa de uma liberdade de resposta melhor ou pior. Eu penso então que nada distingue tanto o teísmo pagão do cristianismo como a doutrina de Aristóteles de que Deus move o universo, sendo Ele mesmo imutável, como o Amado move o que ama (Metafísica, XII). Quanto à cristandade, "Nisto consiste o amor, não em que nós tenhamos amado a Deus, mas em que Ele nos amou" (1 Jo 4.10).

Desse modo, Deus não possui a primeira condição do que é chamado amor egoísta entre os homens. Ele não tem necessidades naturais, nem paixão, para competir com o Seu desejo do bem do amado: ou se existir nEle algo que tenhamos de imaginar de acordo com a analogia de uma paixão, um desejo, Ele se encontra ali pela Sua própria vontade e por nossa causa. A segunda condição também está em falta. Os interesses reais de uma criança podem diferir daqueles que a afeição do pai exige instintivamente, porque a criança é um ser isolado do pai com uma natureza que possui suas próprias necessidades e não existe unicamente para o pai nem encontra perfeição total em ser amada por ele, e que o pai não compreende inteiramente. Mas as criaturas não são assim isoladas de seu Criador, nem Ele deixa de entendê-la. O lugar para o qual Ele as destina em Seu esquema de coisas o lugar  para o qual são feitas. Quando o alcançam, sua natureza é preenchida e sua felicidade alcançada: um osso quebrado foi colocado no seu lugar no universo, a angústia passou. Quando queremos ser outra coisa que não aquela que Deus quer que sejamos, devemos estar desejando, de fato, aquilo que não nos fará felizes. Essas exigências divinas que, aos nossos ouvidos naturais, soam como as de um déspota e pelo menos como as de alguém que ama, na verdade nos levam aonde deveríamos querer ir se soubéssemos o que queremos.

Ele exige nossa adoração, nossa obediência, nossa prostração. Supomos que essas coisas podem beneficiá-lo de alguma forma, ou tememos, como o coro de Mílton, que a irreverência humana possa acarretar a "diminuição da sua glória"? Ninguém pode diminuir a glória de Deus recusando-se a adorá-lo,  como não poderia o lunático apagar o sol escrevendo a palavra "escuridão" nas paredes de sua cela. Mas Deus deseja o nosso bem, e nosso bem é amá-lo (com esse amor responsivo próprio das criaturas) e para amá-lo devemos conhecê-lO: e se O conhecermos, iremos de fato prostrar-nos sobre a nossa face. Se não o fizermos, isso mostra que o que estamos tentando amar não é ainda Deus - embora possa ser a mais achegada aproximação de Deus que nossos pensamentos e fantasia podem alcançar. O chamado, todavia, não é apenas para a prostração e reverência; mas para um reflexo da vida divina, uma participação da criatura nos atributos divinos que está muito além de nossos desejos presentes. Somos convidados a "revestir-nos de Cristo", a nos tomarmos como Deus. Isto é, quer o queiramos quer não, Deus pretende dar-nos aquilo de que necessitamos e não aquilo que agora  julgamos desejar. Mais uma vez ficamos embaraçados com o cumprimento intolerável por demasiado amor e não por falta dele. Mesmo isto, talvez, ainda esteja aquém da verdade. Não se trata simplesmente de que Deus nos fez arbitrariamente de modo que Ele seja o nosso único bem. Em vez disso, Deus é o único bem de todas as criaturas: e por necessidade, cada uma delas deve encontrar o seu bem nessa espécie e grau da fruição de Deus que é própria à sua natureza. A espécie e grau podem variar de acordo com a natureza da criatura: mas que jamais possa haver qualquer outro bem é um sonho ateu. 

George Macdonald, numa passagem de que não me lembro agora, representa Deus dizendo aos homens: "Vocês devem ser fortes com a minha força e abençoados com a minha bênção, pois nada tenho além disso para criar-lhes." Essa é a suma. Deus dá o que Ele possui, e não aquilo que não possui: Ele dá a felicidade que existe, não aquela que não existe.  Ser Deus - ser como Deus e partilhar da Sua bondade em resposta de criatura - ser miserável - essas são as três únicas alternativas. Se não aprendermos a comer o único alimento que  cresce no universo - que qualquer universo possível jamais poderá fazer crescer - então iremos ficar eternamente famintos.

3 comentários :

  1. Respostas
    1. Obrigado por acompanhar o blog, Jonadabe. Continue acompanhando porque ainda há algumas partes desta série a serem publicadas.

      Abraços, Paz de Cristo.

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