sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Ensaio de C. S. Lewis sobre a bondade divina



Esta é a segunda parte da série de postagens "Ensaios de C. S. Lewis". Aqui se fala conceitualmente sobre a bondade de Deus, outro pré-requisito para tratar do problema do sofrimento.

Abraços, Paz de Cristo.


Qualquer consideração da bondade de Deus imediatamente nos ameaça com o seguinte dilema: de um lado, se Deus é mais sábio do que nós, o seu julgamento deve diferir do nosso sobre muitas coisas, e não apenas sobre o bem e o mal. O que nos parece bom pode então não ser bom aos olhos dEle, e o que nos parece mau pode não ser mau. Por outro lado, se o juízo moral de Deus varia em relação ao nosso, de forma que o "branco" para nós possa ser "preto" para Ele, não estamos dizendo nada quando O chamamos de bom; pois declarar "Deus é bom", ao mesmo tempo que afirmamos que a sua bondade é inteiramente diversa da nossa, seria realmente dizer "Não sabemos o que Deus é". Assim sendo, uma qualidade por completo desconhecida em Deus não pode conceder-nos uma base moral para amá-Lo e obedecer-Lhe. Se Ele não é (no que nos diz respeito) "bom", iremos obedecer, se o fizermos realmente, apenas através do medo - e estaríamos igualmente dispostos a obedecer a um Demônio onipotente. A doutrina da Depravação Total - quando é extraída a conseqüência de que, desde que somos totalmente depravados, nossa idéia de bem não possui mérito algum - poderia então transformar nosso cristianismo numa forma de adoração demoníaca.

A solução para este dilema depende de observar o que acontece, nas relações humanas, quando o homem de padrões morais inferiores entra na sociedade de outros que são melhores e mais sábios do que ele e passa gradualmente a aceitar os padrões deles - cujo processo, ao que acontece, posso descrever bastante corretamente, pois passei pelo mesmo. Quando entrei na Faculdade eu tinha tão pouca consciência moral quanto uma criança. Uma leve repugnância pela crueldade e pela avareza era o máximo que podia sentir – quanto à castidade, verdade e auto-sacrifício, pensava nessas coisas como um babuíno pensa na música clássica. Pela graça de Deus entrei num grupo de jovens (nenhum deles cristãos, entretanto) que se igualavam suficientemente a mim no intelecto e na imaginação a fim de assegurar a intimidade imediata, mas que conheciam e tentavam obedecer a lei moral. As idéias deles a
respeito do bem e do mal eram portanto bem diferentes das minhas. O que acontece em tais casos não é absolutamente como se lhe pedissem para tratar como se fosse "branco" o que até então chamava de preto. Os novos julgamentos morais jamais entram na mente como simples inversões (embora os invertam) de  juízos anteriores mas "como senhores com certeza esperados". Você não pode duvidar da direção que está seguindo: são mais como o bem do que os pequenos fiapos de bem que você já sentiu, mas, num certo sentido, são compatíveis com ele.

O grande teste é, porém, o reconhecimento dos novos padrões que se faz acompanhar de um sentimento de vergonha e culpa: temos consciência de nos havermos intrometido numa sociedade para a qual não temos as devidas qualificações. É à luz de tais experiências que devemos considerar a bondade de Deus. A idéia de "bondade" por parte dele difere sem dúvida alguma da nossa; mas você não precisa temer que, ao abordá-la, venha a ser-lhe pedido que inverter os seus padrões morais. Quando a relevante diferença entre a ética divina e a sua ficar aparente, você não irá, de fato, ter qualquer dúvida de que a mudança exigida seja na direção que já chama de "melhor". A "bondade" divina diverge da nossa, mas não é totalmente diferente: ela não difere como o preto do branco, mas como um círculo perfeito se destaca da primeira tentativa de uma criança para desenhar uma roda. Quando porém ela aprende a desenhar, saberá que o círculo que traça então é aquele que estava tentando reproduzir desde o início.

Esta doutrina é pressuposta nas Escrituras. Cristo chama os homens ao arrependimento - um chamado que seria sem sentido se o padrão de Deus fosse por completo diferente daquele que já conheciam e deixaram de praticar. Ele apela para nosso juízo moral, como o temos agora - "Por que se recusam a ver por si mesmos o que é correto?" (Lc 12.57) No Velho Testamento, Deus censura os homens com base nas suas próprias concepções de gratidão, fidelidade e justiça e se coloca, Ele mesmo, no banco dos réus diante das suas criaturas: "Por que foi que seus pais me abandonaram? Por acaso Eu fiz a eles alguma injustiça, para se afastarem de Mim?" (Jr 2.5)

Depois dessas preliminares penso que será seguro sugerir que  alguns conceitos da bondade divina que tendem a dominar nossos  pensamentos, embora raramente expressos em tantas palavras, estão sujeitos a críticas.

Nenhum comentário :

Postar um comentário

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...