quarta-feira, 16 de março de 2016

[TRADUÇÃO] Por que muitos cientistas são tão ignorantes?



Por Pascal-Emmanuel Gobry  - 08 de março de 2016

A ciência tem um enorme prestígio e autoridade em nossa cultura - por razões muito compreensíveis! E isso levou os cientistas (e não-cientistas que reivindicam o manto da ciência) a reivindicar autoridade pública, que é bom, dentro de suas áreas de especialização. O problema é quando eles alegam autoridade em áreas onde eles não têm muita experiência.

Um exemplo recente é Bill Nye, o "Science Guy", que na verdade não é cientista, mas deve a sua carreira como um artista popular à sua suposta competência científica. Bill Nye foi recentemente convidado a opinar sobre se a filosofia é uma aspiração digna.



Como observou Olivia Goldhill em Quartz, a resposta de Nye era tão auto-confiante quanto incrivelmente ignorante. Nas suas palavras:

"O vídeo, que fez toda a comunidade filosófica dos EUA sufocar coletivamente em seu café matinal, é difícil de assistir, porque a maioria das declarações de Nye está errada. Não apenas 'meio errado', mas profundamente, ridiculamente errado. Ele mistura questões sobre consciência e a realidade como se elas fossem uma só e o mesmo tema, e se equivoca totalmente sobre o argumento de Descartes, "penso, logo existo" - isso só para mencionar dois dos muitos exemplos." [Quartz]

Nye caiu na mesma armadilha que Neil de Grasse Tyson e Stephen Hawking. A Filosofia, na opinião desses homens da ciência, é em grande parte inútil, porque não pode nos dar o tipo de certas respostas que a ciência pode, e equivale a pouco mais que especulação.

Há, obviamente, um grão de verdade nisso. A Filosofia não nos dá a certeza de que a matemática ou a ciência experimental pode dar (mas mesmo assim - como muitos filósofos apontariam - estes campos não nos dão tanta certeza quanto às vezes se diz). Mas isso não significa que a filosofia é inútil, ou que não tem rigor. De fato, em certo sentido, a filosofia é inevitável. Argumentar que a filosofia é inútil é fazer filosofia. Além disso, simplesmente não se pode fugir de algumas questões existenciais, e a filosofia é uma das melhores maneiras, ou pelo menos a menos ruim, que criamos para abordar essas questões.

Indo mais ao ponto, e na prática, todas as instituições que tornam a vida moderna possível, inclusive certamente a ciência experimental, mas também coisas como capitalismo de livre mercado, o estado de bem-estar social, a democracia liberal, os direitos humanos, e mais, são fundamentados na filosofia. Todas estas coisas são instituições culturais: elas existem porque muitas pessoas acham certas ideias valiosas e decidem agir nessas bases. Por uma questão histórica, a razão pela qual temos o método científico moderno é porque ele foi desenvolvido por pessoas, incluindo filósofos como Francis Bacon, e refinada por outros filósofos como Karl Popper. E se as ideias que estão na base destas instituições culturais se perdem, ou são mal-compreendidas, as instituições culturais podem deixar de funcionar. Este é o próprio caso da ciência. Isso significa que precisamos, no mínimo, de elites que podem entender essas ideias.

Em vez disso, nós nos tornamos uma cultura filosoficamente analfabeta em grande parte. Aparentemente todos os dias, você pode encontrar exemplos de pessoas que exibem um analfabetismo cultural impressionante - pessoas em posições nas quais isso simplesmente não deveria acontecer. A grande tradição filosófica sobre a qual nossa civilização é construída é deixada largamente de lado. Mesmo os currículos de "Artes liberais" em muitas faculdades* não ensinam os pensadores mais influentes. Se as nossas elites não estão sendo ensinados sobre essa grande tradição, então não deveria nos surpeender que alguns subconjuntos dessa elite - os cientistas experimentais e seus puxa-sacos - não sabem disso.

Isso é parte do problema. Mas é apenas uma parte dele. Afinal, como um grupo, os cientistas têm um interesse objetivo óbvio na ciência experimental sendo reconhecida como o único caminho para o conhecimento valioso, e, portanto, um interesse em desdenhar de outros caminhos para o conhecimento como menos válidos. As pessoas que ouvem os cientistas opinar sobre filosofia devem ter isso em mente.

E ainda há outro fator em jogo. Muitos, embora certamente não todos, dos cientistas que opinam aos quatro ventos sobre a inutilidade da filosofia são publicamente ateus. A forma de ateísmo que eles promovem pode ser chamada de "materialismo eliminativista", ou a noção de que a matéria é a única coisa que existe. Esta teoria é motivada pelo "cientificismo", ou a noção de que as únicas coisas cognoscíveis são cognoscíveis pela ciência. Um tanto paradoxalmente, essas proposições são essencialmente religiosas - descartar porções inteiras da experiência humana e do pensamento humano requer um empreendimento de . Eles também não são uma religião muito inteligente, uma vez que eles acabam simplesmente jogando proposições inconvenientes para baixo do tapete.

O fundamentalismo não é um sistema de crenças ou uma religião, é um estado de espírito. Pode existir religião fundamentalista, ateísmo fundamentalista, socialismo fundamentalista, libertarianismo fundamentalista, etc. O que todos eles têm em comum é, nas palavras de David Bentley Hart, "a recusa obstinada de pensar". O fundamentalista não é aquele cujas ideias são muito simples ou cruas. Ele é o único que teimosamente se recusa a pensar, quer através de outras idéias, ou nas próprias idéias.

Infelizmente, muitas das nossas maiores mentes nos dão um exemplo deste estado de espírito.

____________

* Nota do tradutor: Artes liberais é o sistema de disciplinas que surgiu na Antiguidade, em oposições às artes mecânicas ou trabalhos servis, e que foi desenvolvido nas universidades da Idade Média. O estudo de artes liberais incluía o trivium (lógica, gramática e retórica), com as disciplinas relacionadas à linguagem, e o quadrivium (aritmética, música, geometria e astronomia), com as disciplinas quantitativas.  e hoje em dia ainda é aplicado em universidades  norte-americanas, onde geralmente se obtém o título genérico de Bachelor in Arts (BA) ou Bachelor in Science (BS).

Fonte: The Week

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